quinta-feira, 2 de julho de 2009

Capitulo 2:

A separação.
Depois de alguns dias, Rafe cismou com o trabalho doméstico – já que ele insistia em ajudar. Implorou para auxiliar meu pai na loja, mas eu o proibi, mesmo suas feridas já tendo sido curadas, tinha medo que ele tivesse uma recaída. Era inacreditável seu poder de cura. Em menos de quatro dias, só restavam às cicatrizes.
Então meu pai permitiu – de mal grado – que ele me acompanhasse na procura por gravetos depois de muito nós insistirmos. Eu andava pelo vale, enquanto ele estava a uns dez passos atrás de mim e olhava para cima hipnotizado.
- Rafe? Os gravetos não vão cair em sua cabeça! – disse rindo da minha própria piada.
- Ah, me desculpe – ele sorria também – mas é que não se pode observar o céu aqui. Isso é estranho...
Olhei para cima curiosa. Era verdade.
- Ora, é por causa das árvores. As folhas cobrem o céu. De onde você veio. Ele abaixou os olhos com esse comentário.
- Você não lembra de nada não é?
- Ainda não sei se sou um anjo. – respondeu desanimado.
- Não posso ajudá-lo se você não me der uma pista! Se esforce. Lembre de qualquer coisa!
- Não é tão fácil assim!
A pergunta o aborreceu. Fechou a cara e virou-se de costas.
Decidi ir com mais calma.
- Por favor... Tente.
- Bem eu... - Ele parecia perdido. Procurava imagens em sua própria cabeça.
- Vejo... Coisas, são... são folhas...
- Folhas?
- É. Eu acho que estou correndo... E tem pessoas...
- Quem?
- Não sei! São vozes... Atrás de mim...
- Atrás de você? – repeti meio boba. - E em seguida?
Meu coração disparou quando ele fez uma cara de agonia.
- Eu senti uma dor, insuportável no peito... E...
- E o quê?
- ...Não lembro. - Minha expressão de abatida o fez parecer derrotado. – a memória acaba aí.
Olhei para ele e sorri.
- Do que está rindo?
- Ora, você não vê? – continuei animada – Quando você chegou não se lembrava de nada, e agora teve essa pequena lembrança!
- Ela não serve muito...
- Mas claro que serve! Não sabe o que isso significa?
Ele pareceu confuso novamente.
- Não... – respondeu acabrunhado.
- Significa que sua memória está voltando. – disse singelamente.
Ele finalmente sorriu.
- Você sempre enxerga o lado bom dos acontecimentos. Mas isso não te faz feliz o tempo todo.
Dessa vez eu fiquei séria.
Olhei para o lado na grotesca tentativa de parar a conversa, e avistei um filhote de lobo a sofrer sobre a grama.
- Olhe! – disse espantada correndo para o local. Na verdade meu desespero era tanto, que nem me dei ao trabalho de ver se Rafe me seguia.
O pequeno lobo mal se movia sobre a relva, apenas soltava pequenos grunhidos de dor. Havia um enorme ferimento em seu abdômen.
Abaixei-me e acariciei sua cabeça. Poderia chorar com o seu sofrimento.
- Pobrezinho. Deve de ter sido um caçador ou um animal maior que ele.
Olhei para trás, para verificar que eu falava com alguém.
Rafe estava parado a uns três passos e me encarava muito sério. Eu nunca havia o visto assim.
- Porque te incomoda tanto o sofrimento desse bichinho?
Eu estava abismada. Como ele podia ser tão insensível?
- Como assim? Olhe para ele... Isso... Foi maldade, ele nem tem idade para se defender! Como pode não sentir nada ao ver isto?
Ele continuava sério diante de minha indignação, mas seus olhos transpassavam imprecisão.
- Desculpe... Mas ele não significa nada para mim... Não... Consigo entender... - Meus olhos encheram de lágrimas e virei-me para o animal. Não sabia por que estava chorando, mas não queria que ele me visse assim. – O que está fazendo? Pare! Pare!
Não conseguia me conter. As lágrimas corriam como rios.
- Não... Acredito... No... Quanto você... É... Frio... – balbuciei.
- Porque está caindo água de você? – podia sentir o pânico em sua voz. Ele nem sabia o que era chorar!
- Isso significa que você... Não tem sentimentos... - Meu coração se rasgou quando pensei na possibilidade dele não poder amar.
Delongou um pouco, até que ele se sentasse ao meu lado.
O olhei surpresa quando ele colocou a mão sobre o pequeno bichinho.
E de súbito, uma luz incandescente irradiou dele. Durou pouco, mas foi inconcebível. Ele retirou a mão, e logo após o cachorrinho levantou-se alegremente pulando em êxtase.
Não havia mais ferida alguma. Eu o encarei assombrada.
- Como... Como?
- Eu não sei... Não sei o que me deu! Vi que sofria e desejei vê-la feliz novamente. Não sei como, eu sabia que se colocasse a mão sobre ele, tudo ficaria bem.
- isso foi um milagre...
Ele sorriu para mim enquanto o lobinho pulava em cima de nós.
Mas esse fato fez a angústia me dominar. Senti meu coração desabar sobre meu estômago. Claro que eu estava maravilhada com o que ele havia feito, mas ao mesmo tempo, a certeza de que ele era um anjo me incomodava.
Me incomodava muito.
Já que esse fato, tornava automaticamente tudo o que sentia por ele um pecado mortal e imperdoável. Onde já se viu? Um anjo e uma humana? Não sei o que foi que me deu...
- O que foi? – perguntou a mim. – Você ficou triste.
Levantei depressa, e enxuguei os olhos.
- Não foi nada. – disse atordoada. – Vamos?
- Então... Não está mais enfurecida comigo?
- Não. – respondi singelamente.
Voltei-me para o caminho, agarrei minha cesta de gravetos e comecei a andar pelo caminho de volta para casa. Nós voltamos em completo silêncio, apenas com os latidos do lobinho como sinal de vida.
O desgosto me invadia.
- Talvez seja melhor dar-lhe um nome. Acho que gostou de nós. – disse Rafe inocentemente após um longo tempo.
- Quem?
- Ora. O filhote, ele nos seguiu até aqui. - Ignorei sua resposta. E ficamos em silêncio por mais um período. – Samantha! – Gritou ele parando no meio do caminho. Virei para ele, que me encarava magoado como se eu tivesse traído da pior forma. – Por favor, me diga o que eu te fiz?
Era visível que eu não entendia o que ele falava.
- Por favor! Diga-me para que eu possa consertar! – agoniou-se – Você ficou triste por causa do lobo. Eu o curei. Porque continua enfurecida comigo?
- Não é com você.
- E é com quem?
- Comigo.
Ele me olhou indigesto.
- Não estou entendendo...
- Não precisa entender.
Consegui terminar a conversa com aquela frase, mas percebi que a mesma deixou Rafe ainda mais confuso pelo resto do dia.
Ao início do crepúsculo, meu pai chegou em casa com minha mãe, que agora aproveitava sua instrução em enfermagem e passava os dias a cuidar de uma senhora doente.
- Por favor, meu pai! Por favor, nós cuidaremos para que ele não dê trabalho! Mãe... – Implorava Maya a eles, para que pudéssemos ficar com o lobinho. No início a idéia não agradava nenhum dos dois, mas quando eu mencionei o ‘milagre’ de Rafe eles se entusiasmaram.
Todo mundo queria ter um cachorrinho ‘abençoado’.
Aquilo tudo me aborrecia mais ainda. Me fazia ficar com horror de mim mesma, por deseja-lo. Por ter aquele sentimento – que não sei como, nem quando surgiu. E o mais revoltante é que ele não ligava, não percebia, não sentia o mesmo.
Eu havia me sentado do lado de fora da casa para respirar um pouco, quando meu pai me chamou na sala. O Visconde Peter Doutri estava a me esperar lá.
- Sr. Peter – admirei-me – Não é um pouco tarde para visitas?
- Samantha! - repreendeu meu pai, como de costume.
- Tens razão, mas é que amanhã farei uma longa viagem, e queria vê-la antes de partir.
- Então me desculpe pela arrogância. Eu apenas me preparava mais cedo para me recolher.
- Claro. - Ele se aproximou, curvou-se e beijou suavemente minha mão. – Misericórdia! - Gritou abismado chegando ao máximo para trás – quase caindo sobre meu pai. Olhos e boca arregalados, não saberia dizer se estava apenas chocado ou com medo.
Olhei para minhas costas.
Rafe estava com metade do corpo na porta da sala com as enormes asas abertas. Eu sorri para ele, que me retribuiu.
- Ah Visconde – comecei calmamente – eu o achei ferido na floresta. Ele ficará aqui até melhorar.
- Mas é... é... é...
- Um anjo? – completei ironicamente.
Olhava espantado para Rafe. Como se ele fosse matá-lo.
– Talvez seja melhor eu ir me recolher depois dessa confusão.
- Boa noite. Meu pai... Visconde... – os reverenciei e puxei Rafe para o quintal da casa.
A cara do Visconde me animou, eu gostava de chocá-lo.

No dia seguinte, o que não poderia ter acontecido, aconteceu.
Eu e Rafe estávamos sentados – inocentemente, nos fundos da casa brincando com as crias de pato e com lobinho enquanto conversávamos.
- ...mas esse seu pensamento não contesta a Rainha? – perguntou Rafe.
- Sim.
- O que acontece se você fizer isso?
- Bem, isso é crime! Provavelmente eu iria ser presa e morta degolada... Mas não vou mudar meus pensamentos motivada pela Rainha!
- Não tem medo dela cortar sua cabeça? – perguntou assustado.
Às vezes ele me lembrava uma criança.
- Não – respondi calmamente enquanto jogava milho para as galinhas.
- Você é tão corajosa... – ele me olhava com uma expressão maravilhada.
- Só falo o que creio ser o certo. – respondi acanhada. – tenho certeza que a Rainha Vitória é uma ótima pessoa, mas não sabe o que acontece na vila, por isso deixa as leis antigas prevalecerem. Alguém tinha que mostrar a ela o que acontece aqui!
- Esse alguém é você! – sugeriu entusiasmado.
- Isso é inteiramente insano, Rafe! Sou uma simples camponesa... Não estou à altura da rainha, ninguém me escutaria... Não me permitiriam nem ao menos adentrar no palácio onde a realeza reside.
- Mas você é instruída! Educada como uma nobre... Seu pai disse...
- É verdade. Mas só me resta a educação, não tenho titulo algum, e sei o meu lugar... - respondi com tranqüilidade.
- Me desculpe... Não queria lhe aborrecer...
- Não... você não me irritou. Eu só queria que você entendesse, e não contasse para ninguém o que eu lhe disse.
- Porque senão eles matam você não é? Por calúnia...
Eu o olhei por um instante.
Tinha a expressão tão triste quanto seus olhos.
- É. – respondi igualmente abatida – ...Mas se você não disser nada, eu vou morrer completamente inútil ao Governo de velhice! - proferi tentando anima-lo. Deu certo, nós dois caímos na gargalhada.
- Eu juro solenemente que nunca irei contar a ninguém as idéias que você compartilhou comigo. – disse ele ainda sorrindo.
- Obrigada.
- Pelo que?
- Por não contar!
- Mas eu que devo agradecer! Aprendo uma coisa nova todos os dias com você! É a pessoa mais inteligente que já conheci...
- Isso não é verdade! E o Phelip?
- Ah, mas ele não gosta de mim... E isso é aparente.
- Mas de qualquer modo, não pode dizer isso porque você não se lembra de ninguém antes de mim! – disse me divertindo. Mas em seguida me arrependi de ter feito esse comentário, Rafe ficou triste novamente.
- Você acha que eu vou me lembrar de mais? De quem fez aquilo comigo... Ou do que eu era antes de chegar aqui... – sua expressão era de ruína.
- Claro que sim! Não pode ficar desmemoriado para sempre!
- Mas... E se eu me esquecer de novo? E se eu bater a cabeça?
- Do que está falando? – perguntei confusa.
Sua expressão era aflita de repente. Isso me angustiou também. Não gostava de vê-lo padecer.
- Eu não quero... Esquecer daqui. Não quero me esquecer de você...
Alguns segundos se estenderam. Eu não sabia o que fazer.
- Não seja tolo! Não há como você me esquecer agora!
- Meu Deus, então é verdade... – Olhamos para a porta, e avistamos o Bispo Curt a admirar ‘o anjo’.
Rafe se levantou e pela agilidade como o fez, acredito que ele havia ficado com medo. Não me incomodei, eu também estava amedrontada.
O Bispo se aproximou com a mão estendida fazendo-o recuar.
Eu passei em sua frente.
- Ele não gosta que estranhos o toquem. Ele fica com medo... – disse.
Olhei para Rafe por um instante.
Qualquer um poderia enxergar o pânico em seus olhos.
- Ora, mas eu sou o Bispo! Ele deve de ter alguma mensagem de Deus para mim! – proferiu continuando a insistir em sua aproximação.
Eu o empurrei.
- Creio que não. Ele não se lembra de nada a não ser o nome.
- Não seja insolente! – gritou me empurrando para o lado. Eu caí.
- Não! – gritou Rafe quando o Bispo já estava perto.
E para minha surpresa, ele o empurrou e foi me acudir no chão.
- Sam, você está bem? Você se machucou?
- Não – respondi feliz. Não pude evitar meu sorriso.
Ele se importava comigo, afinal.
- Mas o que está acontecendo aqui? Até os anjos não respeitam mais a Igreja! – gritou o Bispo sem entender. Nós olhávamos para ele sem poder explicar, enquanto meu pai – que estava o tempo inteiro na porta – parecia estar com vergonha. Talvez de mim, ou de Rafe, não sabia dizer.
- Você vem comigo para igreja, que vou fazer uma missa com você presente. Venha, venha, venha logo... – continuou puxando-o para a porta.
- Não, não, eu não quero, não, não, não! – gritava Rafe.
- PARE! PARE! Não vê que ele está com medo! – gritei já de pé.
Ele se chocou com meu grito e soltou Rafe, que correu e me abraçou.
- Sam, eu não quero ir, não quero, eu estou com medo... – começou apavorado.
- Samantha, deixe-o ir. – ordenou meu pai.
- Bispo, que horas é a missa?
- Às seis.
- Eu o levo. – respondi segura.
O bispo lançou um olhar de ódio para mim e para Rafe.
- Estarei esperando. - e em seguida saiu em companhia do meu pai.
Nós nos sentamos de novo, e pude ver que os olhos de Rafe estavam fixados no chão, cheios de pavor.
- Você está bem? – perguntei.
- Não. Aqui dentro, – disse apoiando a mão sobre o peito. – está pesado. Meu coração está acelerado, eu não quero ir...
- Você só está com medo. Vai passar.
- Então isso passa?
- Claro.
- Não preciso de memória para saber que eu nunca senti isso. Esse tal de ‘medo’, bem, é muito ruim, não quero continuar sentindo. Não quero sentir nunca mais!
- Sinto muito, Rafe, mas não há como impedir. Você vai ter que sentir todos os sentimentos, uma hora ou outra.
Ele olhou para mim como se eu tivesse dito um palavrão.
- Sentimentos?
- É. – delongou um pouco até que ele perguntasse.
- Sam... O que é isso? O que são esses sentimentos?
Eu sorri.
- Já suspeitava que não soubesse o que era. – ele me olhava curioso, como das outras vezes, como uma criança. – Todo humano tem sentimentos. Por algum tempo, achei que você não pudesse tê-los, por ser um anjo, mas eu me enganei.
- Mas todos eles são assim... Como o ‘medo’?
Eu sorri novamente.
- Existem sentimentos bons e ruins. O medo é um sentimento ruim.
- Mas existem outros como ele?
- Sim. A dor, o ódio, a ira, a inveja, o egoísmo e muitos outros. Por exemplo... – Olhei ao redor e vi o conjunto de costura de Cassandra. Peguei a agulha e o espetei de leve – para que não pudesse sangrar.
- Ai! – gritou ele.
- Isso se chama dor.
- Chega, faça parar!
- Não posso. Ela para sozinha. Daqui a pouco ela desaparece.
- Não tem nenhum bom que eu possa experimentar, não?
- Sim, tem a alegria, a paz, a coragem, que é o que você deve ter para ir à missa...
- Coragem...
- É. Basicamente, é você enfrentar seu medo. – ele ficou sério – ainda tem o amor...
- Amor. Eu já ouvi sua mãe dizendo ‘eu te amo’ para você, mas nunca entendi, tem algo haver?
- Sim, é um modo de dizer que ela me ama. O amor é o mais complicado dos sentimentos.
- Por quê?
- Porque existe vários tipo de amor. Amor de amigo, amor próprio, de homem e mulher... Amar é querer o bem do outro, só que existem vários tipos de intensidade, entendeu?
- Mas quando que a gente sabe, qual é o tipo de amor que a gente tem?
Eu amava as perguntas dele. Faziam-me sorrir mais que o normal.
- Você sempre vai saber. Às vezes a gente ama um amigo como um irmão, mas nem sempre ama um irmão como um amigo...
- Como a Cassandra com você.
- Sim - assumi triste – Existe o amor de mãe e o de homem e mulher, que são fortes. Não posso dizer com precisão porque nunca vivi nenhum dos dois. Mas minha mãe me disse que ela é capaz de trocar a vida dela pela minha.
- Nossa. Mas ela não tem medo?
- Às vezes o amor é maior que o medo.
- Então, meu amor por você foi maior que meu medo! – proferiu sorrindo. Meu coração deu uma volta completa quando ele disse ‘meu amor por você’. – Quando eu vi você cair...
- Sim – respondi sem jeito. Levantei-me despreocupada, já que era visível que ele havia entendido.
- Sam? – virei-me para ele novamente. – Você me ama?
Arregalei os olhos com a pergunta.
Não iria mentir, mas também não iria explicar.
- Claro. Mas é claro que amo você. – ele sorriu.
- Eu também te amo.
Novamente não puder conter a alegria e sorri também. Mesmo sabendo que meu sentimento era um pecado, não conseguia me livrar dele. Talvez, meu amor fosse o maior de todos, como o da minha mãe por mim.
Porque eu faria qualquer coisa para fazê-lo feliz, e seria capaz de morrer para não vê-lo sofrer.
Claro que Rafe estava completamente apavorado com a idéia da missa. Tentei tranqüiliza-lo como pude, e deu um pouco certo, mas eu sabia que ele estava apenas fingindo para mim, ter ‘coragem’. Depois de muito esforço - devido as enormes asas, consegui vesti-lo com uma camisa branca. O difícil foi convencê-lo a sair e caminhar até a igreja.
- Sam... Eu tenho mesmo que ir? – perguntou quando já estávamos na rua a caminhar.
A mão dele – agarrada a minha – parecia um gelo tremendo.
- Temos sim, porque senão o bispo vai acusar minha família de egoísmo. - Paramos na porta da igreja, e eu olhei no fundo dos seus olhos extremamente azuis. - Não tenha medo. Estarei com você.
Entramos na pequena capela aos olhares chocados da cidade. A cada comentário que ouvíamos Rafe se encolhia ao meu lado. Olhei para ele por um minuto. Seus olhos assustados estavam cheios de lágrimas – mais uma vez – como os de um menino com medo.
Fiz questão de ficar no altar com ele, mas logo o bispo começou a criar problema e eu o deixei lá sozinho.
- Irmãos e irmãs. Temos aqui em vossa frente um mensageiro de Deus para nossa cidade. Vamos ouvir o que ele tem a dizer!
Comecei a tremer quando vi todas aquelas pessoas virarem para Rafe. Olhei para ele.
Uma lágrima rolava em seu rosto, ele apanhou-a e olhou para mim sem entender. Eu sorri, pela descoberta dele, mas não podia responder a pergunta que seus olhos curiosos me faziam. Eu não podia fazer absolutamente nada.
Estava impotente.
- Diga algo! – gritou o bispo.
- Eu... – começou Rafe - ...Não tenho nada a dizer.
- Como nada? – perguntou diante da exclamação do povo.
- Não sei de nada, nem de onde vim, nem como cheguei. – descreveu sinceramente - Só me lembro de cair!
- Mas é claro! – gritou o bispo – Você apenas caiu. Por acidente! Iremos devolvê-lo!
- Como assim devolve-lo? – gritei me erguendo diante da afirmação dele.
- Vamos dar-lhe um veneno, para que retorne aos seus. – proferiu com um sorriso na face. – vamos fazer essa gentileza ao senhor Jesus. Vamos devolver-lhe seu anjo. – gritava enquanto todos concordavam felizes.
Meu coração se perdeu nas batidas, não conseguia respirar só de pensar na possibilidade. Não podiam matá-lo! Ele era um anjo! Não podiam fazer isso comigo! Eu não iria suportar!
- Não! – gritei novamente no meio da igreja.
Corri horrorizada e abracei Rafe. Nem cheguei a notar as lágrimas caindo de meu rosto. Fiquei feliz ao notar que ele me abraçou com a mesma intensidade.
- levem-no para o palácio, para vossa majestade conhece-lo. - e - não sei de onde surgiram - três homens vieram para me afastar dele; que entrou em pânico novamente.
Não posso condená-lo. Eu também entrei.
Apesar de todos os gritos e tentativas de Rafe, conseguiram leva-lo - para minha agonia. E eu fiquei ali, sem poder fazer nada - já que um homem me agarrou e segurou ao mesmo tempo. Acabei sendo obrigada a sentar-me e assistir o resto da missa. Mas eu já não via nada. Não ouvia nada. Eu só chorava e chorava, refletindo na probabilidade de assassinarem Rafe.
Meu Rafe. Meu anjo.
Ouvia minha mãe me chamar ao fundo – bem distante – mas não conseguia me mecher. Estava petrificada de dor.
Ela dizia que a missa havia acabado. Que deveríamos sair.
Mas só as lágrimas se manifestavam.
A dor que era insuportável se espalhava do meu íntimo ao meu corpo. Como se tivessem extraído meu coração – embora eu ainda o sentisse bater – porque havia uma assombrosa cratera em meu peito e eu sentia cada vez mais a sua escuridão aumentar em mim, sem que eu pudesse fazer nada.
- Acho que ela está em estado de choque – disse Phelip.
- Sam! Fala comigo. – dizia meu pai a me sacudir. – Samantha!
Nada.
- Pra mim isso é frescura. – disse Cassandra.
- Talvez devêssemos chamar um médico. – falou minha mãe.
Alguém respirou fundo.
- Eu sabia que aquela ave não ia fazer bem a ela. Estava muito apegada a ele. – continuou Phill – eu a levo. – disse a alguém.
Logo senti ele agarrar meu tronco, minhas pernas e me suspender no ar.
No meio do caminho esforcei-me para dizer algo, mas só consegui quando chegamos e Phelip me colocou de pé sobre o chão.
- Rafe... – chamei aos prantos. – Rafe...
- Sam, ele não mora mais aqui. – disse Phill me olhando nos olhos – ele não existe mais para você. Ele vai morrer.
Parei para analisar a frase, e respirei fundo.
‘Então eu quero ir com ele’ respondi em meu íntimo.
Fechei os olhos. Não sentia mais nada.

Nenhum comentário:

Postar um comentário