segunda-feira, 29 de junho de 2009

Capítulo 1

Rafe

Era um fim de tarde nublado com leves brisas. O sol raramente aparecia entre as nuvens. E eu, apreciava, sentada na beira do lago, os passarinhos beberem água.
As flores que caiam das árvores em minha cabeça constratavam com a cor da minha roupa. O outono estava acabando, logo seria inverno e o lago que eu tanto gostava se congelaria novamente.
Eu apreciava feliz, enquanto podia, a calma do lugar.
- Samantha! – Ouvi um grito distante.
Levantei-me devagar e indignada - precisava dar esse grito? - e andei pelo parque até chegar à casa vermelha no fim da rua. Parei quando os avistei, respirei fundo, e entrei porta adentro.
- Chamou meu pai? – Perguntei.
- Não me fale comigo nesse tom! O Visconde Doutri veio visitá-la. – respondeu ele nervoso.
John Bradley era um homem simples, sem riquezas, mas sempre tentava fazer de tudo para garantir que as filhas tivessem uma vida melhor, mesmo que isso significasse um casamento arranjado. Eu era sua filha mais ‘preciosa’. Tinha sido estudada e educada no sul da Inglaterra por minha Tia nobre, então ele se aproveitava do meu conhecimento e também da minha juventude para tentar me arranjar em um casamento com outros nobres - por mais que eu já tenha dito que não iria me casar aos 17 anos.
- Está cada dia mais linda – disse o Visconde cavalheiramente.
O visconde não era velho, devia ter uns 22 anos, era alto e forte. Ele era bonito e elegante, mas não me enchia os olhos, talvez porque o conhecia desde criança.
- Bondade do senhor – respondi, sendo educada.
- Me desculpe atrapalhar suas atividades normais...
- É, geralmente o senhor tem interrompido muito!
- Samantha! – repreendeu meu pai.
- Bem, é verdade meu pai!
- Me desculpe pela boca da minha filha, Visconde...
- Ora, o que é isso! Eu conheço Sam há muitos anos, Sr. Bradley. Não esperaria resposta diferente dessa.
- Mesmo assim – continuou enquanto me lançava um olhar censurador – Samantha ainda não aprendeu a se comportar na frente de visitas!
- É... Parece que a tia Grimaldi não conseguiu lhe ensinar isso. – concordou o Visconde, em tom sarcástico.
- Espero que o senhor Visconde não queira se certificar que eu vá aprender. – respondi no mesmo tom.
- Claro que não. – me respondeu sério – Gosto da sua originalidade. E quantas vezes vou ter que pedir que me chame de Peter?
Um silêncio irrompeu a sala. Depois de alguns segundos Sandrinha chegou à sala e deixou uma jarra de suco. Ela sempre foi pálida, bonita, e tinha curtos cabelos negros. Eu nunca entendi porque ela não gostava de mim.
- Obrigado Cassandra. – disse meu pai.
Ela me lançou um olhar de fúria e saiu pisando firme.
- Meu Deus, olha à hora! – comecei, fingindo surpresa. – São quase sete! O senhor obviamente é um homem ocupado. – continuei me levantando - Deve estar cansado... Talvez esteja na hora de se recolher...
- Sam! Assim o Visconde vai achar que você está o expulsando!
- Ora meu pai. Só quis ajudar. – respondi tentando parecer ingênua.
- Se quiser pode ficar para o jantar, senhor.
- Não, não. Na verdade, Samantha tem razão. – concordou levantando-se – Já passou da hora de eu me recolher. Vim apenas para vê-la.
- Ah que pena. – comentei, ironicamente.
- Volto na próxima semana para visitá-la. – disse para mim, enquanto beijava minha mão. – Contarei os dias para revê-la.
Eu detestava fazer aquele papel da jovenzinha donzela. Aquilo era patético, cada vez que ele chegava eu contava os segundos para ele ir embora. Fiz uma careta enquanto ele saía em companhia de meu pai.
Aproveitei para fugir para a cozinha, antes que papai voltasse.
Sabia que iria ouvir.
Encontrei lá minha mãe mexendo uma panela velha, enquanto Cassandra tentava fazer o dever de história. Ela dava pequenos gemidos em curtos espaços de segundos, o que me levou a acreditar que ela só estava quebrando a cabeça.
- Não é assim que se faz Sandrinha – começei em direção a mesa.
- Me deixa! – gritou a garota levantando-se de repente e me empurrando para a parede.
- O que é isso Cassandra? – gritou minha mãe.
A garota não respondeu. Apenas saiu com raiva para o quarto.
- O que eu fiz? – perguntei.
- Nada – disse à menina que tinha acabado de surgir – Você sabe como a Cassandra é. Ela fica com raiva sempre que você ganha uma coisa!
- Mas eu não ganhei nada!
- É, mas você tem um pretendente, e ela não. Só isso já basta.
Nós ficamos em silêncio diante da verdade absurda dita.
Aos 12 anos, Maya Bradley era minha irmã mais nova. Era impossível não se encantar com ela. Tinha cabelos loiro platinado, como os da mãe, e olhos extremamente azuis. Parecia um pequeno anjo.
- Samantha! – ouviu-se o grito de meu pai ecoar pela casa.
Logo ele estava na cozinha.
- Você está de castigo! – disse dirigindo-se a mim.
- Ora, o que fiz?
- Você sabe o por que! Já mandei parar de tratar o Visconde mal!
- Não seja teimoso papai! Eu tenho 17 anos, eu não o amo! Não quero casar! – me exaltei levantando-me.
- Não importa! Amor vem com o tempo! – gritou erguendo-se também.
- Importa para mim! – gritei, uma enorme tensão se espalhava na cozinha.
- Quem geralmente faz esse trabalho é sua irmã, Cassandra, mas apartir de hoje você vai fazê-lo. Todos os dias pela tarde você vai colher gravetos no bosque, para a fogueira, ao invés de sonhar com besteiras naquele lago!
- NÃO! Pai, por favor! Pai?
- O castigo está dado Samantha. Está imposto até que você tome juízo!
Eu senti meu coração ir apertando lentamente. O ódio correndo em mim. Saí para me despedir do lago que não veria tão cedo. Ouvi minha mãe gritar enquanto me distanciava. Eles não podiam entender. Era o único lugar que me sentia em paz para pensar, ler, e sonhar.
Agora o tinha perdido.

Com o passar dos dias, eu me deprimia mais.
Não tinha mais privacidade, nem tempo de ler meus livros. Aos poucos, a vida ia ficando cada vez mais sem cor. A única coisa que restava a fazer era bordar e dormir. E assim, passaram-se meses de tristeza. Agora, eu não tinha animo nem para receber o Visconde quando ele vinha me visitar. Minha vontade era dormir e não acordar.
E toda tarde eu tinha que ir buscar os malditos gravetos para o fogo do jantar!
Dura realidade.
Em mais um dia tedioso, eu me levantei e fui passear pela floresta a procura de gravetos.
Era uma das tardes que eu gostava, nublada com leves brisas. Caminhava sem pressa com um cesto na mão. Admirei a paisagem da floresta no outono, de folhas caídas e aproveitou o frescor das cinco da tarde. No princípio da noite, eu me preparava para retornar a casa, quando ouvi os pássaros voarem e alguma coisa grande cair entre as arvores.
Deixei minha cesta no chão, entre as folhas e corri para o local. Tinha certeza de que seria um pobre pato gordo que se desequilibrou de sua viagem. Mas ao chegar lá, eu encontrei algo mais ferido do que um homem na guerra e mais belo que qualquer animal já visto.
Abri e fechei os olhos com força várias vezes para ter a certeza de que era real.
Era, ou parecia ser, um garoto caído entre as folhas do chão. Haviam duas grandes asas que estavam coladas ao seu corpo. E mesmo que não as tivesse, não seria inacreditável se me dissessem que talvez ele fosse um anjo, de tão lindo que era.
Sua cor se embatia com seu cabelo preto e mesmo com alguns cortes, era possível ver que sua pele era perfeita. Eu me sentei ao lado do seu corpo debilitado e imóvel.
Inicialmente achei que estaria morto, mas ele logo acordou. E eu - totalmente abestalhada fiquei a observar seu comportamento.
Ele ofegava como se estivesse correndo e respirava com muita dificuldade. Olhava para mim sobressaltado, sua expressão era de dor ele e tremia como uma folha ao vento.
Passou algum tempo até que um de nós falasse algo.
- Meu nome é Sam – falei me aproximando enquanto ele se encolhia numa árvore. – Tudo bem. Não vou te machucar...
Continuei. Consegui chegar bem próximo dele.
Fora o som da sua respiração ofegante, ficamos em silêncio.
Era visível a luta interna dele para continuar consciente.
- R-Rafe – sibilou com extrema dificuldade.
- Rafe... – repeti.
Como uma criança, fiquei ali apenas examinando o quanto ele era diferente. Meu coração batia desesperado, estava mais assombrada que ele.
Era como se eu estivesse diante de um ser de contos de fada.
Como era previsto, ele não conseguiu ficar por muito mais tempo acordado, e perdeu os sentidos depois de alguns minutos.
- Rafe? Rafe? – o chamei sem sucesso.
E agora? O que eu iria fazer? Não poderia deixá-lo ali!
Levantei-me prontamente, ergui as enormes saias, e corri até em casa.
Quem ligava pra gravetos uma hora dessas?
- Mãe! Mãe! – gritei enquanto chegava à habitação.
- Hey! Calma garota! Nossos pais e irmãs foram visitar o tio Bill. – respondeu o jovem de cabelos escuros. – Fiquei para tomar conta de você.
- Eu encontrei... Encontrei... – arfava, ignorando seu falatório.
- Encontrou o quê? Mais gravetos? – perguntou ele.
Phelip era meu belo e civilizado, irmão mais velho.
Cobiçado por todas as famílias do pequeno vilarejo onde morávamos, ele tinha - na maior parte do tempo - um humor sarcástico que às vezes me irritava.
- Vem! – chamei-o exaltada. Não podia deixar Rafe sozinho, ele estava muito machucado... E se ele morresse?
- Espere! – gritava Phelip apressado atrás de mim.
Logo eu cheguei - primeiro - ao local que o havia deixado inconsciente, mas para meu espanto, ele havia desaparecido completamente deixando apenas uma trilha de sangue e penas para trás.
Um pouco depois Phelip chegou ao meu encontro e assombrou-se ao ver o caminho de líquido avermelhado.
- Sam... - arfou ele se apoiando em uma árvore para respirar melhor - Mas... O que é isso Samantha? Você... Matou uma galinha?
- Não seja bobo! – disse desesperada.
Meu corpo todo tremia.
Sentia meu coração acelerado. Perguntava-me se ele não fora uma ilusão. Tinha certeza que não. Decidiu seguir a trilha.
- O que está fazendo? – perguntou Phelip pasmado – E se for um lobo?
- Não é um lobo! Eu sei o que é! – gritei andando pelo caminho.
- E o que é? – perguntou ele passando em minha frente, em uma tentativa ridícula de me impedir.
Eu parei.
Como iria dizer o que ele era se eu não sabia?
- É... Um garoto. Eu acho.
- Um garoto? – perguntou com o rosto incrédulo – estava sozinha na mata com um garoto?
- Não! É... Saia da frente Phelip! – respondi confusa, empurrando-o. Ele não entenderia mesmo...
- Samantha! Volte aqui! – gritava ele, seguindo-me com dificuldade, já que eu praticamente corria como se estivesse sendo perseguida.
- Você não vai entender sem ver Phelip! Eu preciso ajudá-lo! – gritei para ele. Meu vestido já havia sido rasgado pelas raízes das árvores, sem que eu me importasse.
Não foi preciso ‘correr’ mais de um metro para encontrar Rafe.
Ele estava encostado em uma árvore, respirava com a mesma dificuldade, mas tentava arduamente continuar de pé.
Eu me aproximei rápido, enquanto Phelip permanecia petrificado sem acreditar. Rafe se desesperou logo que me viu.
Ele sangrava como se alguém tivesse o esfaqueado.
- Calma, calma! Já disse que... Não irei machucá-lo. – disse exaltada. – Só quero lhe ajudar...
E ele pareceu me ouvir, porque parou para me contemplar.
Depois de alguns minutos ele parecia esforça-se para falar.
- Samantha... – começou Phelip, mas fiz um gesto para que ficasse quieto.
- Não se esforce... – lhe respondi. Ele gemeu e fez uma pausa para dar uma grande tragada no ar. A seguir soltou outro grunhido de dor e caiu de joelhos no chão. As enormes asas abertas no ar...
Era evidente o fundo corte acima de seu tórax.
- Phelip, o que está fazendo aí parado? Temos que ajuda-lo! – gritei.
- Bem... Eu...
- Vem logo!
Com a ajuda de Phelip - que reclamou o caminho inteiro – nós conseguimos levar Rafe para nossa casa.
- Deite aí na cama. – disse para ele. Nós três havíamos chegado ao quarto das meninas, e ele ainda respirava com dificuldade.
Ele parou por algum tempo, mas teve que assentir. Não estava suportando nem o próprio peso. Suas asas quebraram algumas coisas no quarto, mas eu não liguei muito. Depois de algum tempo eu o fiz parar de sangrar. Mesmo assim, a imagem dele ainda era assombrosa para todos. Menos para mim. Eu admirava sua perfeição por horas.
- Pai! - gritou Phelip logo que ele entrou com minha mãe e irmãs.
Do quarto ouvi a conversa deles.
- A viagem foi ótima, antes que pergunte Phelip...
- Não é isso pai... A Sam... Ela achou... Eu tentei impedir, mas... Ele... Ia morrer! – gaguejava em pânico.
- Phelip se acalme. – começou nossa mãe – o que a Anya achou? - Ele decidiu leva-los até o quarto. Pelo que conheço dele, estava com receio de dizer e eles não acreditarem. Ao chegar, todos encontraram Rafe sentado e encostado na minha cabeceira, em minha companhia, com as enormes asas agora mais fechadas, nós só nos encarávamos sem pronunciar nada.
- Samantha... – começou meu pai. A voz dele fez com que eu me levantasse atordoada. – Quem... O que é isso?
- O nome dele é Rafe, pai.
- Rafe... – repetiu ele assim como eu da primeira vez que o vi.
- Cale a boca John! – disse a mãe ajoelhando-se ao lado de Rafe – Não vê que Deus nos abençoou? Olhe! Ele é um anjo!
- Tem razão Leya... Talvez ele tenha alguma mensagem do senhor para nós...
- Bem – comecei – Ele não é de falar muito. – eu continuei vendo que ninguém me interrompera – Eu o encontrei ferido na floresta, acho que ele... Caiu. Phelip me ajudou a trazê-lo...
- Ajudei? – interrompeu ele – Eu praticamente o carreguei!
- Não exagere Phill! Ele veio andando! – disse - A mãe tentou tocar na mão de Rafe, mas ele a retirou como se estivesse ferida. - Ah, mãe? Ele não gosta muito... Que o toquem... Acho que ele tem medo de nós.
- Por quê?
- Eu já disse que não iremos machucá-lo, mas ele não gosta mesmo assim.
- Anjos tem idade? – perguntou Maya.
- Não seja boba! Anjos vivem para sempre! – disse Phelip
- E como é que você sabe? – perguntou Cassandra. – Quantos anos você tem?
Demorou um pouco para que Rafe respondesse.
- Dezessete. – disse para surpresa de todos.
- Ele pode ficar não pode? – perguntei. – Pelo menos até melhorar.
- Claro. – gritou Leya. – Será uma honra abrigar um anjo do senhor em nossa casa!
E assim foi. As semanas foram passando e Rafe foi ficando cada vez mais. Ele se tornou amigo das meninas, mas só falava se lhe perguntassem alguma coisa. Conversava mesmo comigo. Todos o tratavam bem e criaram um tipo de carinho por ele, menos Philip. Ninguém sabia por que ele não gostava de Rafe, que não parecia se incomodar com isso. Ele só saia de casa para o quintal. Evitava sair para que ninguém pudesse ver suas asas, e também não podia voar porque uma delas ainda estava quebrada.
- Sam. – chamou ele.
Nós dois estávamos no quintal. Ele me observava pegar ovos das galinhas.
- Que foi?
- Eu morava aqui, antes da queda?Quero dizer... Eu sou da sua família?
Eu parei de me mecher para encará-lo com minha expressão duvidosa.
- Do que está falando Rafe? Nós nunca havíamos visto um anjo antes!
- Será que... Eu sou um anjo mesmo?
- E o que mais seria?
- Eu não sei... Não me lembro.
- Como assim, não se lembra?
- Eu só me lembro do meu nome! Isso não é normal! Eu não sou normal... – disse exaltado.
- Você sabe quantos anos tem...
- Mas eu disse como um extinto, não como uma lembrança!
- Não sofra com isso, Rafe! – disse encarando-o de perto – Se é tão importante pra você... Eu o ajudo a descobrir quem você é, e de onde veio.
- Faria isso por mim?
Demorou um tempo até eu parar de admirá-lo.
- Faria qualquer coisa por você... - respondi feliz, por ter conseguido lhe arrancar um sorriso.
O sorriso mais belo de toda a existência...

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