quinta-feira, 2 de julho de 2009

Capitulo 3:

A fuga.

Recobrei a consciência em pouco tempo – creio eu – mas não abri os olhos imediatamente. Fiquei ali deitada, meio morta, tentando me enganar e dizer que tudo não passou de um sonho, mas não adiantou muito. Foi tudo extremamente intenso, para dizer que não aconteceu.
Levantei calmamente. Decepcionada, magoada com as palavras de Phill.
Olhei-me no enorme espelho em meu quarto.
Indagava a mim mesma onde estaria Rafe. O que estaria fazendo ou se estava bem. O medo crescia novamente em mim, ao perceber que eu não poderia responder nenhuma das perguntas.
As lágrimas me vieram em seguida, mas as conti, não queria chorar mais, queria agir, tira-lo do palácio real a qualquer custo.
Eu sabia que aonde quer que ele fosse, estaria apavorado.
Tinha medo de qualquer pessoa que não conhecesse.
Durante todo o tempo que Rafe esteve comigo, ele mais parecia uma criança de dois anos. Era como se tudo fosse novo, ele se impressionava fácil, até com minhas roupas!
Sorri sozinha.
Sentia falta da inocência dele.
Somente aí percebi que não ouvira nenhum barulho desde meu despertar. Corri até a sala, mas não havia ninguém. Fui até a cozinha, então, e encontrei todos lá. Maya a tricotar, meu pai a ler um livro, minha mãe a cozinhar e Cassandra parecia chorar sobre a mesa. Apenas Phelip não estava presente.
Senti falta das trapalhadas que as asas de Rafe causavam na cozinha – ele derrubava tudo pelo caminho, pobrezinho.
- Está melhor minha filha? – perguntou meu pai. – Me parece pálida...
Não respondi, a voz não saiu. Olhei novamente para Cassandra que se esfolava de chorar.
Meu coração de repente apertou. Ela choraria por um finado?
Meu pai olhou-a também.
- Pare com isso! Já disse que ele não vai voltar! – gritou.
Não adiantou muito.
Ela soltou um doloroso gemido e correu para algum canto da casa. Eu certamente tinha razão.
- Estou avisando de antemão. Não quero mais ouvir o nome ‘Rafe’ aqui!
– continuou ele.
Juro que tentei obedecer meu pai. Mas era mais forte que eu!
Existia uma vontade em mim de vê-lo, de saber como estava, e se ainda estava vivo. E como eu nada fazia, me sentia como se tivesse algo dentro de mim, impelindo para sair. Eu parecia que ia explodir!
Naquela tarde eu andava de um lado para outro dentro de meu quarto procurando uma solução, enquanto Sandra se esgoelava no outro cômodo.
Foi quando a solução bateu a minha porta.
- Samantha? – ouvi Angelinne chamar.
Caminhei ligeiro até a porta, e lá estava ela.
Com um triste sorriso nos lábios e seus cachos castanhos. Sempre bem arrumada, sua expressão me transpassava tranqüilidade.
Abracei com força minha velha amiga. Estava muito feliz em vê-la.
- Que saudade de você... Faz tanto tempo que não há vejo. – disse.
- É verdade que o anjo estava aqui? – me perguntou chocada.
- Entre. – respondi fechando a porta. Sentamos em minha cama e abaixei minha cabeça para admitir o ocorrido. – Eu o achei na floresta. Estava muito ferido, ainda está na verdade, mas era o ser mais lindo que eu já havia visto. O trouxe pra casa e o tratei. – dei um longo suspiro – foi isso.
- Mas ele tem mesmo asas? - sorri com a pergunta.
- Tem sim, brancas e enormes.
- Nossa eu queria tê-lo visto. Preciso de bênçãos.
- Ele conversava muito comigo, sabe. Nossa, quando me lembro dos olhos dele. – fechei os olhos e respirei fundo.
Olhei para Angelinne, mas ela me olhava abismada.
- que foi?
- Sam! Nunca a ouvi falar de alguém assim? Apaixonou-se por ele?
Pensei em dizer não. Mas não queria mentir, nem adiantaria. Angelinne era minha amiga desde que eu havia chegado da casa da minha Tia, poucas pessoas me conheciam tão bem como ela.
O que mais poderia dizer? Comecei a chorar.
- Não sei como isso foi acontecer! – gemi com dificuldade.
- Sam isso é suicídio! Tem que tirar isso do seu coração senão... senão...
- ...eu vou ser queimada como herege. Eu sei. - respondi me controlando.
- Então.
- Então, que mais fácil é dizer do que fazer. Não se apaga sentimento. Não pense que não tentei! Mas quando eu via os olhos dele, a ingenuidade que ele tinha, as coisas que ele me dizia... – proferi sorrindo sem perceber. – não tem jeito. Ele é apaixonante.
- Você perdeu o juízo.
- Quando se ama, não existe juízo! – levantei e parei um pouco para pensar – Você tem que me ajudar a tirá-lo do palácio!
- O que?
- Você trabalha lá não é? Como empregada?
- Sam, não posso perder meu emprego! – levantou também, assombrada.
- Não estou dizendo que vai perdê-lo! Ninguém vai saber que foi você!
- Não!
- Por favor, Angie!
- Se você não desistir dele, vai morrer! E mesmo assim sua alma irá queimar por toda eternidade! É isso que você quer? – gritou para mim.
Demorei um pouco para responder.
- Se ele estiver bem, não me importo de arder nas labaredas do inferno.
Vi que ela espantou-se mais ainda. Mas minha intenção não era chocar. Eu amava Rafe mais do que qualquer coisa ou pessoa. Eu refletia primeiramente nele, para depois refletir em mim.
- Você tem certeza? Tem certeza que o ama tanto assim? – me perguntou.
- Tenho.
Ela pegou em minha mão.
- então eu a ajudarei, porque sei o que é amar alguém proibido. – sorri para minha amiga e a abracei.
Eu sabia que ela falava sobre seu romance com meu irmão Philip. E tenho que admitir que sempre tive um pouco de pena dos dois. Mas hoje compreendo o sofrimento deles.
Angelinne era jovem e bonita, mas era proibida de casar pelo insano do pai. Ele queria que ela terminasse sua juventude cuidando dele, como se ele fosse um inválido.
- Assim que puder eu arranjo uma possibilidade de colocá-la dentro do castelo e você foge com ele.
- Como? - Ela sorriu da minha distração.
- Ele não tem duas asas de enfeite. – dessa vez eu também ri.
- Como vou saber onde ele vai estar?
- Ele está no quarto mais alto, perto da torre, com grades na janela.
Horrorizei-me com o fim da frase. Estavam mantendo-o prisioneiro?
- Ele está preso?
- Bem... Pelo que me contaram, ele vive num conforto irreal, mas não pode sair do quarto de forma alguma. Até a casinha foi colocada lá dentro!
- Mas porque isso? – perguntei chocada, aquilo tudo era ridículo!
- Ele tenta fugir sempre que pode, e a força que ele possui é tão grande que os homens da rainha não conseguem segura-lo por muito tempo, então a solução é prendê-lo. - me emocionei com aquilo tudo. Logo estava chorando novamente. – Não se preocupe. Tiraremos ele de lá.
- Venha. Vamos ver Phill. – disse para disfarçar meu desalento. Deu certo ela prontamente abriu um sorriso e passou a minha frente para abrir a porta. Passamos pela cozinha e descemos escadas até um cômodo embaixo da casa.
Lá havia uma mesa com vários vidros de líquidos com cores diferentes, e instrumentos estranhos. Encontramos Phelip de costas para nós trabalhando em um pedacinho de tecido branco – no qual não reparei direito – e ele parecia usar uma espécie de óculos-lupa.
- Phill? – perguntei.
- Sam, já lhe disse que não gosto que venha aqui.
- Foi por uma boa causa. – respondi. Ele virou-se.
Um longo sorriso irradiou-se em seu rosto quando avistou Angelinne, olhei rapidamente para ela, que tinha a mesma expressão.
- Angie. Que saudade... – disse enquanto andava em nossa direção.
- Contei as horas para revê-lo. Não pensava em outra coisa. – contou ela a segurar suas mãos. Os olhos dos dois brilhavam ao se encontrar. - Tenho que ir. – falou depois de um delongado tempo.
- Não! Fique mais um pouco. Nem conversamos.
- Meu pai sabe que vim por causa de Samantha e... Bem... Você conhece a Sandra.
Cassandra tinha inveja de qualquer amor que fosse.
Fazia questão de manter uma amizade sórdida com o Sr. Renew só para acusar Angie. Ela sabia que a garota era proibida de namorar e muito menos de noivar.
- Eu cuido dela. – disse Phill.
- Prefiro evitar brigas. – respondeu por fim. Beijou o rosto de seu amado e me deu um singelo ‘adeus’. Subiu as escadas e partiu.
- Ela se foi. – continuou ele repetindo o obvio. Sua expressão era de decepção. Dei-lhe um sorriso de consolo e fui dar uma volta na floresta – com a desculpa dos gravetos; e a cada folha que eu via no chão, eu lembrava de Rafe. Perguntava-me se ele também sentia minha falta. Se sentia, a saudade dele não era maior que a minha.
Sorri sozinha. Afinal, ele nem deveria saber o que é isso. Saudade.
Meu coração se enchia de esperança.
Esperança em revê-lo.

Depois de um mês, eu estava aflita. Sentia-me como se não conseguisse respirar direito. Na verdade, eu já não conseguia fazer nada direito. Nem comer, nem beber, falar, ler, e até andar – já que nas últimas semanas eu havia caído mais que o meu normal. Não pensava em outra coisa a não ser Rafe. Eu não dormia pensando nele, e quando dormia, sonhava com ele ou pior, tinha pesadelos! Tentava disfarçar o máximo que eu podia, mas as visitas do Visconde ficavam cada vez mais insuportáveis! Tinha medo que meus pais anunciassem a qualquer momento meu casamento.
Não. Isso eu não agüentaria.
Sempre que Angelinne vinha me visitar era para contar algo de ruim. Da última vez, ela me disse que estavam preparando Rafe para a morte, como uma cerimônia, e que o envenenamento aconteceria no dia 23 de novembro em praça publica.
Eu estava em completo pânico! Era dia 20 e eu não tinha nada planejado. Nem a entrada no palácio, nem como o tiraria de lá. E o pior. Eu sabia que se me pegassem eu iria morrer com ele, mas não de uma forma indolor. Seria excomungada na frente de todos e envergonharia minha família. Não falava muito nisso, mas no fundo isso me preocupava. Não por mim, mas pela minha família. Tinha consciência de que eles jamais me perdoariam.
Mais um crepúsculo chegava fim e eu estava junto de meu pequeno lago restrito, a pensar que eu nem havia tido tempo de mostrar o local a Rafe.
Foi quando vi Angelinne parada próxima a uma das árvores e tomei um grande susto, cheguei soltar até uma pequena exclamação.
- Tudo bem, sou eu... – disse arrependida.
- Não faça mais isso, quase me matou do coração. Alguma novidade?
- Sim, é agora.
- Agora o que?
- É a hora de atacarmos e tira-lo de lá venha! – disse me puxando pelo braço – não temos muito tempo!
- Mas já?
- Se você quiser desistir...
- Nunca. – respondi com precisão, já andando. – Passamos em casa, para me despedir e vamos embora.
- Vai pegar algo?
- Só algumas coisas.
- Mas para onde você vai?
- Eu não sei. Mas não interessa. O importante é que não nos alcancem!
Logo chegamos a casa e arranjei uma desculpa para abraçar a todos. Deixei Angie a se derreter pelo meu irmão e fui arrumar minhas coisas em uma pequena maleta. Pensei no que colocar, mas estava tão nervosa que nada vinha a minha cabeça! Não podia colocar coisas de sobrevivência como comida e remédios porque senão iriam suspeitar.
Até que uma idéia veio a minha mente.
Coloquei coisas realmente necessárias na maleta, a amarrei ao meu arco e flecha e lanceei-a pela janela. Fiquei feliz ao ver que ela caiu próxima a floresta, depois eu passaria ali e pegaria a mesma. Vesti uma roupa – que a própria Angelinne havia me dado – bem diferente da habitual.
Uma calça ligeiramente apertada, botas e um espartilho – feito para ser tirado do vestido rapidamente. Tudo preto – como uma viúva, para não chamar a atenção, mas a verdade é que só havia uma viúva na cidade, então o efeito foi contrário. Incomodava-me o fato dela desenhar muito meu corpo, mas a essa altura eu não iria implicar com isso. Ao terminar de vestir o espartilho, ouvi a porta se abrir. Virei-me para tentar me esconder, mas já era tarde demais.
Phelip e Maya estavam parados na porta a me contemplar espantados.
- Sam. Aonde vai de traje preto? Algum velório? – perguntou Phill.
- Philip, eu posso explicar.
- Então explique.
- Eu sei o que ela vai fazer – disse Maya, bem mais calma. - vai atrás do anjo não é?
Não respondi. Encarava Phill como se houvesse uma faca em meu peito. Se ele achasse errado o que eu iria fazer, jamais veria Rafe novamente.
- Responda Samantha. É isso?
Balancei a cabeça positivamente. Minha voz já não funcionava, e as lágrimas já começavam a manifestar meu medo. Delongou-se um pouco até que Phill falasse algo.
- Desde a primeira vez em que observei vocês dois juntos eu notei que você o olhava de uma forma diferente. Agora eu sei. Apaixonou-se por ele.
Ele parou de novo para me encarar.
- Você sabe o que irá acontecer se alguém lhe pegarem. – não era uma pergunta, era uma afirmação. – Tem certeza, que é esse o caminho que você quer seguir?
Eu me esvaía em lágrimas.
Limpei a face e respirei fundo.
- Eu amo tanto quanto você ama Angelinne. – respondi com autoridade – Prefiro morrer com ele a viver sem tê-lo.
- Muito bem. – disse ele. Meu coração tremia apesar de transparecer segurança. – Então eu estou com você.
Levantei a cabeça chocada. Não acreditei que tinha ouvida aquilo!
- Você é minha irmã. – continuou andando até mim – e sempre estarei com você, na decisão que você tomar.
- Phill? É sério? – perguntei sorrindo, ainda sem acreditar.
- Claro que é. Você escolhe seu caminho. Sabe que eu nunca acreditei muito nisso tudo de julgamento, céu e inferno... Mas se existe mesmo, uma coisa é certa. Todo amor é divino, não importa quem ou o que o sinta. Se existe alguém que pode lhe julgar, não é o povo. Mas Deus.
Meu sorriso se aumentou – se é que isso era possível – e dei a ele um longo abraço.
Minhas lágrimas agora, eram de felicidade.
Estava tão alegre que minha voz falhava novamente.
- Para onde você vai? – perguntou ele.
- Bem... Eu não sei...
- Já era de se esperar vindo de você. Sempre afoita demais... Tem uma cabana abandonada no fim da floresta que você tanto roda. Ninguém achará você lá. Mas não se demore por aqui, alguém pode ter a infeliz idéia de rondar a floresta. – O abracei de novo. Ainda não estava acreditando!
- Sam. – disse Maya saindo de trás de Philip – estou do seu lado também.
- Obrigada minha menininha! – respondi abraçando-a – não esperava outro costume de você! Venha me ajude aqui. Tenho que vestir a saia por cima da calça. – Vesti o resto de minha roupa e saí feliz até a sala com outra pequena maleta – de disfarce. Encontrei lá Angelinne e minha mãe, sentadas a discutir algo.
- Sam, para onde você vai?
Meu coração disparou. Não pensei nessa desculpa.
- Bem... eu... vou, bem...
- Angelinne não lhe contou mamãe? – perguntou Maya para surpresa geral.
- Não, está apenas me enrolando.
- Ora. ela vai para o palácio real. A rainha Vitória exigiu sua presença lá.
- Meu Deus! – exclamou minha mãe levantando-se. A cor de seu rosto esvaiu-se. Achei que fosse desmaiar.
- Ela vai servir de dama - de - companhia para Rafe, já que ele anda muito inquieto e exigiu a presença dela lá.
- Meu Deus. Se foi vossa majestade que ordenou, vá, vá logo!
Sorri para Maya em sinal de agradecimento e fui. Passei disfarçadamente atrás da casa e peguei minha maleta e encaixei meu arco em minhas costas entre as vestes de uma forma que ninguém perceberia. Depois subi o mais rápido possível em cima da carruagem do palácio que Angie arrumou e segui o caminho todo com o sorriso na face pensando em reencontrar Rafe.
Meu peito arfava.
Estava morrendo de medo, mas eu estava extremamente feliz. Eu nunca havia sentido aquilo antes. O sangue fervia em minhas veias.
Não demorou muito para chegarmos ao castelo. Ele era extravagante e pomposo. Todo branco e cheio de guardas. Angie se aproximou de um deles e disse algo, logo após o portão branco estava se abrindo para nós. O lugar era tão grande que a carruagem deu mais duas voltas para chegar até a porta dos fundos da cozinha – pela qual entram os empregados. Agradeci ao condutor e entrei em uma passagem estreita e suja.
A cozinha era horrível, e a condição das mulheres que trabalhavam ali era pior. Não eram mais que cinco todas emporcalhadas e com enorme fedor. Eu nunca havia visto um lugar tão repugnante e imundo em toda minha vida! Em pensar que comidas saiam dali!
- Não olhe para elas. – sussurrou Angelinne quando passávamos. Cruzei todo o caminho de cabeça baixa até chegarmos a uma outra cozinha completamente limpa e perfeita. Eu não entendi nada. – Aquelas que você viu, são escravas, elas fazem o trabalho pesado com o ingrediente. Ralam queijo, gengibre, fazem massa de macarrão. Aqui as empregadas somente preparam a comida. - E eu senti uma agonia em meu íntimo. Demorou até eu mesma perceber que estava com pena das ‘mulheres sujas’. Caminhamos até um quarto ao lado da cozinha, ele era pequeno, mas confortável.
- Pra quê isso? – perguntei ao ver Angie remexer em roupas no pequeno guarda roupas. Ela tirou de lá um avental e uma tiara branca – como a das empregadas.
- Não pode simplesmente circular pela casa. Tem que se disfarçar!
- Mas e se alguém não me conhecer?
- Diga que foi contratada hoje por mim. Eu sou encarregada de saber quantos empregados o palácio necessita.
- Certo – respondi insegura, colocando o avental e a tiara.
- Quem leva a comida para o Rafe é Elizabeth, mas eu a prendo e você leva no lugar dela, exato?
- Exato.
Terminei de vestir a roupa e assisti escondida, Angie bater com uma panela na cabeça da tal ‘Elizabeth’ – a pobre desmaiou na hora – e trancou-a no quarto. Subimos várias escadas até chegarmos ao corredor certo, até que fomos paradas por uma jovem esplêndida, a mais bela que eu havia visto, porém ela tinha uma expressão de esnobe na face. Nos olhava com total desprezo. Angelinne curvou-se levemente quando a viu e eu nada podia fazer a não ser imitá-la e esconder entre as vestes minha maleta.
- Vossa Alteza. – disse para a jovem voltando ao normal.
- Não me lembro dessa serviçal trazer o prato do anjo. – disse levantando meu rosto.
- Hoje é seu primeiro dia Alteza, foi contratada peculiarmente para isso. Com autorização de sua mãe. – ela olhava diretamente em meus olhos, o que fazia todo meu corpo se arrepiar.
- Certo. – disse por fim se retirando, e ainda esperamos ela descer as escadas para falar algo.
- Quem é? – perguntei apavorada.
- Princesa Beatriz. É melhor correr ela é meio cismada, gosta de procurar confusão, tenho certeza que vai perguntar a mãe se já lhe viu alguma vez. A porta é aquela. - Olhei para frente, havia uma enorme porta de ferro no fim do corredor, caminhei devagar meio covarde.
- Aonde vai? – perguntei vendo Angie se virar.
- Não posso ficar, senão vão suspeitar. Já estou comprometida porque a Princesa me viu contigo. Boa sorte, agora é com você.
Engoli seco e coloquei a bandeja com comida no chão.
Girei a roda de ferro como em um cofre, apanhei a bandeja, entrei e a porta se bateu imediatamente. O quarto era extremamente grande e luxuoso, havia uma janela com grades também de ferro e foi aonde achei Rafe.
Sentado na janela, observava hipnotizado o céu.
- Pode deixar a bandeja, Elizabeth, obrigada. – disse abatido, sem se virar.
Abri um enorme sorriso ao ouvir sua voz.
Meu coração pulava feliz ao vê-lo.
- Meu nome não é Elizabeth. – respondi alegre. Rafe se virou ligeiro e abriu o sorriso mais belo do mundo para mim.
- Samantha... – disse sem acreditar. Deu-me um abraço tão forte e longo que me levantou do chão. – Como chegou aqui? Eu estou tão feliz que você esteja aqui, eu me sinto tão sozinho! Essa gente é muito estranha, eles sempre querem que eu diga alguma coisa que eu não faço idéia do que é!
- Rafe, nós temos que sair daqui. Eles vão matar você! – falei rodando o quarto procurando alguma saída.
- Como assim matar?
Parei e me virei para ele. Esqueci que de que não sabia de nada.
- Rafe, e se eu pegar essa faca... – disse apanhando-a da bandeja - ...e enfia-la em meu peito?
- NÃO! – gritou ele.
- porque não?
- porque você vai sentir dor, como me disse. Não quero que sofra.
- Vai além disso. Se o ferimento for muito grave, profundo... Eu iria morrer. Perder os sentidos para sempre e nunca mais iria falar com você. Meu corpo apodreceria e em pouco tempo eu seria apenas ossos.
- Mas isso é horrível! Eu não quero te perder assim!
- Por isso eu não quero que morra! Dizem que quando se morre, o corpo apodrece, mas você continua vivo em algum outro lugar.
- Que lugar?
- Não posso te contar agora, não dá tempo! Se me pegarem aqui, morro eu e você. – respondi tirando o arco das costas, minha saia e ficando somente de calça.
- Então. Nós não vamos para o mesmo lugar?
- São dois lugares, um bom e um ruim. Provavelmente eu iria para o ruim e você para o bom e não nos veríamos nunca por toda a eternidade.
A porta se abriu de repente e a Princesa Beatriz estava com três guardas a sua frente.
- Eu sabia. – disse ela. – Eu estava na missa, Sam. Eu nunca esqueço um rosto. O jeito como você reagiu... Eu sabia que se estivesse aqui, não seria para trabalhar.
Eu entrei em pânico. Olhei para Rafe – que não entendia nada – e para o resto do quarto. Não havia para onde fugir.
- Matem-na. – Os guardas se aproximavam de mim quando Rafe passou a minha frente.
- Quem encostar nela, não vai gostar do fim que isso vai ter. – olhei para ele surpresa, nunca o tinha ouvido falar daquela maneira. Um guarda o empurrou na cama.
- Você é um anjo. Não faz mal a ninguém. – disse avançando para mim.
- Não, não se aproxime. – falei assustada. Ele me agarrou com força, mas consegui empurra-lo com os pés. Corri para a porta, mas outro guarda me deu uma bofetada. Eu caí e bati a cabeça em algum lugar – talvez na cama.
- NÃO! – ouvi Rafe gritar. Olhei lerdamente para ele, meio inconsciente, vi que seus olhos muito azuis estavam ficando vermelhos. Achei que fosse alucinação minha, mas um dos guardas gritou: ‘olhem os olhos dele!’ E depois disso eu perdi um pouco os sentidos. Quando acordei, Rafe estava lutando com outros guardas. Levantei ainda tonta e vi princesa – no meio da confusão – pegar uma faca e ir para cima de Rafe.
A consciência agiu rapidamente após isso. Agarrei o arco e atirei em suas costas sem pensar duas vezes.
“A princesa” gritavam todos os guardas.
Rafe olhou para mim – seus olhos ainda estavam vermelhos. – e arrancou as grades de ferro da janela com uma facilidade espantosa. Esticou o braço para mim.
Eu já não podia voltar atrás.
Apanhei minha maleta, coloquei o arco e flecha nas costas, e o abracei. Sentir ele me levantar do chão e pular. Fechei os olhos, para sentir a adrenalina e o medo se misturarem e correrem em meu sangue enquanto ele voava sobre o palácio. A velocidade era tanta que depois de alguns segundos chegamos ao meio da floresta e ele me largou no chão.
- Meu Deus! – exclamei, não dava para crer! – Não acredito que fizemos isso! E você arrancou a janela de ferro! Como... – me virei para Rafe, ele estava sentado num relevo com uma expressão de dor e uma flecha em suas costas. – Meu Deus. Você voou comigo com isso nas suas costas?
- Não podia deixá-la cair.
Balancei a cabeça descrente. Ele soltou um grito quando arranquei a flecha. Fiz um curativo e ele logo melhorou. Eu sabia que trazer curativos seria necessário.
- Rafe?
- Que foi?
- Quando eu estava caída, eu olhei para você... e seus olhos estavam vermelhos...
- Eu não sei o que aconteceu. Quando vi aquele guarda enorme bater em você... – ele afagou meu rosto – ...tão frágil... Uma coisa cresceu em mim. Eu... Eu queria machucá-lo, como ele machucou você, mas eu não parei para pensar. Foi instintivo... Isso foi errado, não é?
- Não. Isso foi humano. Você fica mais forte quando está com raiva.
- Então isso é raiva...
- É – respondi sorrindo, percebi que estávamos perto demais, eu me afastei para recolocar minha saia. Parei quando vi que Rafe ainda me observava.
- O que?
- Samantha... Você é tão bonita... – eu sorri involuntariamente, não agüentava mais guardar aquilo para mim mesma.
- Rafe, você sabe porque eu fui tentar fugir com você? – ele balançou a cabeça negativamente.
Eu sentei a sua frente.
- Eu amo você.
Ele sorriu com entusiasmo.
- Eu também amo você.
Ele não estava entendendo.
- Lembra que eu disse que existem vários tipos de amor?
- Claro!
- O amor que eu tenho por você não é de amigo...
- Como não... – perguntou confuso.
- ...É de homem e mulher.
Ouve uma pausa, eu sabia que ele não tinha idéia do que dizer.
- Mas e agora? Eu não sei que tipo de amor que eu tenho! - eu sorri. Não conseguia pensar muito bem, meu cérebro formigava e meu coração se afundava, provavelmente procurava se abrigar em algum lugar próximo ao meu rim. – Eu amo você Anya. Amo de verdade...
Levantei devagar na direção dele, estávamos muito próximos... Próximos demais... Fechei os olhos e o beijei.
A adrenalina foi maior do que quando pulamos de doze metros de altura.
- O quê... – eu me afastei e sorri novamente da falta de jeito dele. – O que você fez? Eu... Eu estou tremendo... Sinto uma vontade de sair correndo por aí, mas não consigo me mecher!
- Se chama beijo.
- Beijo?
- Estou sentindo a mesma coisa que você... Foi o primeiro beijo da minha vida e da sua.
- As pessoas fazem isso frequentemente?
- Só os casais.
- Meu Deus!
- Foi tão ruim assim? – perguntei triste.
- Bem... – ele parou para pensar por alguns segundos - ...Não.
- Não?
- Eu senti uma coisa muito estranha e agonizante, como se coisas dentro de mim trocassem de lugar. Mas... Foi bom – respondeu sorrindo. – Como é que pode?
Sorri para ele. Caminhei em sua direção e o beijei de novo.
Dessa vez ele me retribuiu.
- E agora? O que você sente? – perguntei; ele me olhava hipnotizado.
- Sinto que eu quero te beijar de novo... – e eu me afastei sorrindo.

Capitulo 2:

A separação.
Depois de alguns dias, Rafe cismou com o trabalho doméstico – já que ele insistia em ajudar. Implorou para auxiliar meu pai na loja, mas eu o proibi, mesmo suas feridas já tendo sido curadas, tinha medo que ele tivesse uma recaída. Era inacreditável seu poder de cura. Em menos de quatro dias, só restavam às cicatrizes.
Então meu pai permitiu – de mal grado – que ele me acompanhasse na procura por gravetos depois de muito nós insistirmos. Eu andava pelo vale, enquanto ele estava a uns dez passos atrás de mim e olhava para cima hipnotizado.
- Rafe? Os gravetos não vão cair em sua cabeça! – disse rindo da minha própria piada.
- Ah, me desculpe – ele sorria também – mas é que não se pode observar o céu aqui. Isso é estranho...
Olhei para cima curiosa. Era verdade.
- Ora, é por causa das árvores. As folhas cobrem o céu. De onde você veio. Ele abaixou os olhos com esse comentário.
- Você não lembra de nada não é?
- Ainda não sei se sou um anjo. – respondeu desanimado.
- Não posso ajudá-lo se você não me der uma pista! Se esforce. Lembre de qualquer coisa!
- Não é tão fácil assim!
A pergunta o aborreceu. Fechou a cara e virou-se de costas.
Decidi ir com mais calma.
- Por favor... Tente.
- Bem eu... - Ele parecia perdido. Procurava imagens em sua própria cabeça.
- Vejo... Coisas, são... são folhas...
- Folhas?
- É. Eu acho que estou correndo... E tem pessoas...
- Quem?
- Não sei! São vozes... Atrás de mim...
- Atrás de você? – repeti meio boba. - E em seguida?
Meu coração disparou quando ele fez uma cara de agonia.
- Eu senti uma dor, insuportável no peito... E...
- E o quê?
- ...Não lembro. - Minha expressão de abatida o fez parecer derrotado. – a memória acaba aí.
Olhei para ele e sorri.
- Do que está rindo?
- Ora, você não vê? – continuei animada – Quando você chegou não se lembrava de nada, e agora teve essa pequena lembrança!
- Ela não serve muito...
- Mas claro que serve! Não sabe o que isso significa?
Ele pareceu confuso novamente.
- Não... – respondeu acabrunhado.
- Significa que sua memória está voltando. – disse singelamente.
Ele finalmente sorriu.
- Você sempre enxerga o lado bom dos acontecimentos. Mas isso não te faz feliz o tempo todo.
Dessa vez eu fiquei séria.
Olhei para o lado na grotesca tentativa de parar a conversa, e avistei um filhote de lobo a sofrer sobre a grama.
- Olhe! – disse espantada correndo para o local. Na verdade meu desespero era tanto, que nem me dei ao trabalho de ver se Rafe me seguia.
O pequeno lobo mal se movia sobre a relva, apenas soltava pequenos grunhidos de dor. Havia um enorme ferimento em seu abdômen.
Abaixei-me e acariciei sua cabeça. Poderia chorar com o seu sofrimento.
- Pobrezinho. Deve de ter sido um caçador ou um animal maior que ele.
Olhei para trás, para verificar que eu falava com alguém.
Rafe estava parado a uns três passos e me encarava muito sério. Eu nunca havia o visto assim.
- Porque te incomoda tanto o sofrimento desse bichinho?
Eu estava abismada. Como ele podia ser tão insensível?
- Como assim? Olhe para ele... Isso... Foi maldade, ele nem tem idade para se defender! Como pode não sentir nada ao ver isto?
Ele continuava sério diante de minha indignação, mas seus olhos transpassavam imprecisão.
- Desculpe... Mas ele não significa nada para mim... Não... Consigo entender... - Meus olhos encheram de lágrimas e virei-me para o animal. Não sabia por que estava chorando, mas não queria que ele me visse assim. – O que está fazendo? Pare! Pare!
Não conseguia me conter. As lágrimas corriam como rios.
- Não... Acredito... No... Quanto você... É... Frio... – balbuciei.
- Porque está caindo água de você? – podia sentir o pânico em sua voz. Ele nem sabia o que era chorar!
- Isso significa que você... Não tem sentimentos... - Meu coração se rasgou quando pensei na possibilidade dele não poder amar.
Delongou um pouco, até que ele se sentasse ao meu lado.
O olhei surpresa quando ele colocou a mão sobre o pequeno bichinho.
E de súbito, uma luz incandescente irradiou dele. Durou pouco, mas foi inconcebível. Ele retirou a mão, e logo após o cachorrinho levantou-se alegremente pulando em êxtase.
Não havia mais ferida alguma. Eu o encarei assombrada.
- Como... Como?
- Eu não sei... Não sei o que me deu! Vi que sofria e desejei vê-la feliz novamente. Não sei como, eu sabia que se colocasse a mão sobre ele, tudo ficaria bem.
- isso foi um milagre...
Ele sorriu para mim enquanto o lobinho pulava em cima de nós.
Mas esse fato fez a angústia me dominar. Senti meu coração desabar sobre meu estômago. Claro que eu estava maravilhada com o que ele havia feito, mas ao mesmo tempo, a certeza de que ele era um anjo me incomodava.
Me incomodava muito.
Já que esse fato, tornava automaticamente tudo o que sentia por ele um pecado mortal e imperdoável. Onde já se viu? Um anjo e uma humana? Não sei o que foi que me deu...
- O que foi? – perguntou a mim. – Você ficou triste.
Levantei depressa, e enxuguei os olhos.
- Não foi nada. – disse atordoada. – Vamos?
- Então... Não está mais enfurecida comigo?
- Não. – respondi singelamente.
Voltei-me para o caminho, agarrei minha cesta de gravetos e comecei a andar pelo caminho de volta para casa. Nós voltamos em completo silêncio, apenas com os latidos do lobinho como sinal de vida.
O desgosto me invadia.
- Talvez seja melhor dar-lhe um nome. Acho que gostou de nós. – disse Rafe inocentemente após um longo tempo.
- Quem?
- Ora. O filhote, ele nos seguiu até aqui. - Ignorei sua resposta. E ficamos em silêncio por mais um período. – Samantha! – Gritou ele parando no meio do caminho. Virei para ele, que me encarava magoado como se eu tivesse traído da pior forma. – Por favor, me diga o que eu te fiz?
Era visível que eu não entendia o que ele falava.
- Por favor! Diga-me para que eu possa consertar! – agoniou-se – Você ficou triste por causa do lobo. Eu o curei. Porque continua enfurecida comigo?
- Não é com você.
- E é com quem?
- Comigo.
Ele me olhou indigesto.
- Não estou entendendo...
- Não precisa entender.
Consegui terminar a conversa com aquela frase, mas percebi que a mesma deixou Rafe ainda mais confuso pelo resto do dia.
Ao início do crepúsculo, meu pai chegou em casa com minha mãe, que agora aproveitava sua instrução em enfermagem e passava os dias a cuidar de uma senhora doente.
- Por favor, meu pai! Por favor, nós cuidaremos para que ele não dê trabalho! Mãe... – Implorava Maya a eles, para que pudéssemos ficar com o lobinho. No início a idéia não agradava nenhum dos dois, mas quando eu mencionei o ‘milagre’ de Rafe eles se entusiasmaram.
Todo mundo queria ter um cachorrinho ‘abençoado’.
Aquilo tudo me aborrecia mais ainda. Me fazia ficar com horror de mim mesma, por deseja-lo. Por ter aquele sentimento – que não sei como, nem quando surgiu. E o mais revoltante é que ele não ligava, não percebia, não sentia o mesmo.
Eu havia me sentado do lado de fora da casa para respirar um pouco, quando meu pai me chamou na sala. O Visconde Peter Doutri estava a me esperar lá.
- Sr. Peter – admirei-me – Não é um pouco tarde para visitas?
- Samantha! - repreendeu meu pai, como de costume.
- Tens razão, mas é que amanhã farei uma longa viagem, e queria vê-la antes de partir.
- Então me desculpe pela arrogância. Eu apenas me preparava mais cedo para me recolher.
- Claro. - Ele se aproximou, curvou-se e beijou suavemente minha mão. – Misericórdia! - Gritou abismado chegando ao máximo para trás – quase caindo sobre meu pai. Olhos e boca arregalados, não saberia dizer se estava apenas chocado ou com medo.
Olhei para minhas costas.
Rafe estava com metade do corpo na porta da sala com as enormes asas abertas. Eu sorri para ele, que me retribuiu.
- Ah Visconde – comecei calmamente – eu o achei ferido na floresta. Ele ficará aqui até melhorar.
- Mas é... é... é...
- Um anjo? – completei ironicamente.
Olhava espantado para Rafe. Como se ele fosse matá-lo.
– Talvez seja melhor eu ir me recolher depois dessa confusão.
- Boa noite. Meu pai... Visconde... – os reverenciei e puxei Rafe para o quintal da casa.
A cara do Visconde me animou, eu gostava de chocá-lo.

No dia seguinte, o que não poderia ter acontecido, aconteceu.
Eu e Rafe estávamos sentados – inocentemente, nos fundos da casa brincando com as crias de pato e com lobinho enquanto conversávamos.
- ...mas esse seu pensamento não contesta a Rainha? – perguntou Rafe.
- Sim.
- O que acontece se você fizer isso?
- Bem, isso é crime! Provavelmente eu iria ser presa e morta degolada... Mas não vou mudar meus pensamentos motivada pela Rainha!
- Não tem medo dela cortar sua cabeça? – perguntou assustado.
Às vezes ele me lembrava uma criança.
- Não – respondi calmamente enquanto jogava milho para as galinhas.
- Você é tão corajosa... – ele me olhava com uma expressão maravilhada.
- Só falo o que creio ser o certo. – respondi acanhada. – tenho certeza que a Rainha Vitória é uma ótima pessoa, mas não sabe o que acontece na vila, por isso deixa as leis antigas prevalecerem. Alguém tinha que mostrar a ela o que acontece aqui!
- Esse alguém é você! – sugeriu entusiasmado.
- Isso é inteiramente insano, Rafe! Sou uma simples camponesa... Não estou à altura da rainha, ninguém me escutaria... Não me permitiriam nem ao menos adentrar no palácio onde a realeza reside.
- Mas você é instruída! Educada como uma nobre... Seu pai disse...
- É verdade. Mas só me resta a educação, não tenho titulo algum, e sei o meu lugar... - respondi com tranqüilidade.
- Me desculpe... Não queria lhe aborrecer...
- Não... você não me irritou. Eu só queria que você entendesse, e não contasse para ninguém o que eu lhe disse.
- Porque senão eles matam você não é? Por calúnia...
Eu o olhei por um instante.
Tinha a expressão tão triste quanto seus olhos.
- É. – respondi igualmente abatida – ...Mas se você não disser nada, eu vou morrer completamente inútil ao Governo de velhice! - proferi tentando anima-lo. Deu certo, nós dois caímos na gargalhada.
- Eu juro solenemente que nunca irei contar a ninguém as idéias que você compartilhou comigo. – disse ele ainda sorrindo.
- Obrigada.
- Pelo que?
- Por não contar!
- Mas eu que devo agradecer! Aprendo uma coisa nova todos os dias com você! É a pessoa mais inteligente que já conheci...
- Isso não é verdade! E o Phelip?
- Ah, mas ele não gosta de mim... E isso é aparente.
- Mas de qualquer modo, não pode dizer isso porque você não se lembra de ninguém antes de mim! – disse me divertindo. Mas em seguida me arrependi de ter feito esse comentário, Rafe ficou triste novamente.
- Você acha que eu vou me lembrar de mais? De quem fez aquilo comigo... Ou do que eu era antes de chegar aqui... – sua expressão era de ruína.
- Claro que sim! Não pode ficar desmemoriado para sempre!
- Mas... E se eu me esquecer de novo? E se eu bater a cabeça?
- Do que está falando? – perguntei confusa.
Sua expressão era aflita de repente. Isso me angustiou também. Não gostava de vê-lo padecer.
- Eu não quero... Esquecer daqui. Não quero me esquecer de você...
Alguns segundos se estenderam. Eu não sabia o que fazer.
- Não seja tolo! Não há como você me esquecer agora!
- Meu Deus, então é verdade... – Olhamos para a porta, e avistamos o Bispo Curt a admirar ‘o anjo’.
Rafe se levantou e pela agilidade como o fez, acredito que ele havia ficado com medo. Não me incomodei, eu também estava amedrontada.
O Bispo se aproximou com a mão estendida fazendo-o recuar.
Eu passei em sua frente.
- Ele não gosta que estranhos o toquem. Ele fica com medo... – disse.
Olhei para Rafe por um instante.
Qualquer um poderia enxergar o pânico em seus olhos.
- Ora, mas eu sou o Bispo! Ele deve de ter alguma mensagem de Deus para mim! – proferiu continuando a insistir em sua aproximação.
Eu o empurrei.
- Creio que não. Ele não se lembra de nada a não ser o nome.
- Não seja insolente! – gritou me empurrando para o lado. Eu caí.
- Não! – gritou Rafe quando o Bispo já estava perto.
E para minha surpresa, ele o empurrou e foi me acudir no chão.
- Sam, você está bem? Você se machucou?
- Não – respondi feliz. Não pude evitar meu sorriso.
Ele se importava comigo, afinal.
- Mas o que está acontecendo aqui? Até os anjos não respeitam mais a Igreja! – gritou o Bispo sem entender. Nós olhávamos para ele sem poder explicar, enquanto meu pai – que estava o tempo inteiro na porta – parecia estar com vergonha. Talvez de mim, ou de Rafe, não sabia dizer.
- Você vem comigo para igreja, que vou fazer uma missa com você presente. Venha, venha, venha logo... – continuou puxando-o para a porta.
- Não, não, eu não quero, não, não, não! – gritava Rafe.
- PARE! PARE! Não vê que ele está com medo! – gritei já de pé.
Ele se chocou com meu grito e soltou Rafe, que correu e me abraçou.
- Sam, eu não quero ir, não quero, eu estou com medo... – começou apavorado.
- Samantha, deixe-o ir. – ordenou meu pai.
- Bispo, que horas é a missa?
- Às seis.
- Eu o levo. – respondi segura.
O bispo lançou um olhar de ódio para mim e para Rafe.
- Estarei esperando. - e em seguida saiu em companhia do meu pai.
Nós nos sentamos de novo, e pude ver que os olhos de Rafe estavam fixados no chão, cheios de pavor.
- Você está bem? – perguntei.
- Não. Aqui dentro, – disse apoiando a mão sobre o peito. – está pesado. Meu coração está acelerado, eu não quero ir...
- Você só está com medo. Vai passar.
- Então isso passa?
- Claro.
- Não preciso de memória para saber que eu nunca senti isso. Esse tal de ‘medo’, bem, é muito ruim, não quero continuar sentindo. Não quero sentir nunca mais!
- Sinto muito, Rafe, mas não há como impedir. Você vai ter que sentir todos os sentimentos, uma hora ou outra.
Ele olhou para mim como se eu tivesse dito um palavrão.
- Sentimentos?
- É. – delongou um pouco até que ele perguntasse.
- Sam... O que é isso? O que são esses sentimentos?
Eu sorri.
- Já suspeitava que não soubesse o que era. – ele me olhava curioso, como das outras vezes, como uma criança. – Todo humano tem sentimentos. Por algum tempo, achei que você não pudesse tê-los, por ser um anjo, mas eu me enganei.
- Mas todos eles são assim... Como o ‘medo’?
Eu sorri novamente.
- Existem sentimentos bons e ruins. O medo é um sentimento ruim.
- Mas existem outros como ele?
- Sim. A dor, o ódio, a ira, a inveja, o egoísmo e muitos outros. Por exemplo... – Olhei ao redor e vi o conjunto de costura de Cassandra. Peguei a agulha e o espetei de leve – para que não pudesse sangrar.
- Ai! – gritou ele.
- Isso se chama dor.
- Chega, faça parar!
- Não posso. Ela para sozinha. Daqui a pouco ela desaparece.
- Não tem nenhum bom que eu possa experimentar, não?
- Sim, tem a alegria, a paz, a coragem, que é o que você deve ter para ir à missa...
- Coragem...
- É. Basicamente, é você enfrentar seu medo. – ele ficou sério – ainda tem o amor...
- Amor. Eu já ouvi sua mãe dizendo ‘eu te amo’ para você, mas nunca entendi, tem algo haver?
- Sim, é um modo de dizer que ela me ama. O amor é o mais complicado dos sentimentos.
- Por quê?
- Porque existe vários tipo de amor. Amor de amigo, amor próprio, de homem e mulher... Amar é querer o bem do outro, só que existem vários tipos de intensidade, entendeu?
- Mas quando que a gente sabe, qual é o tipo de amor que a gente tem?
Eu amava as perguntas dele. Faziam-me sorrir mais que o normal.
- Você sempre vai saber. Às vezes a gente ama um amigo como um irmão, mas nem sempre ama um irmão como um amigo...
- Como a Cassandra com você.
- Sim - assumi triste – Existe o amor de mãe e o de homem e mulher, que são fortes. Não posso dizer com precisão porque nunca vivi nenhum dos dois. Mas minha mãe me disse que ela é capaz de trocar a vida dela pela minha.
- Nossa. Mas ela não tem medo?
- Às vezes o amor é maior que o medo.
- Então, meu amor por você foi maior que meu medo! – proferiu sorrindo. Meu coração deu uma volta completa quando ele disse ‘meu amor por você’. – Quando eu vi você cair...
- Sim – respondi sem jeito. Levantei-me despreocupada, já que era visível que ele havia entendido.
- Sam? – virei-me para ele novamente. – Você me ama?
Arregalei os olhos com a pergunta.
Não iria mentir, mas também não iria explicar.
- Claro. Mas é claro que amo você. – ele sorriu.
- Eu também te amo.
Novamente não puder conter a alegria e sorri também. Mesmo sabendo que meu sentimento era um pecado, não conseguia me livrar dele. Talvez, meu amor fosse o maior de todos, como o da minha mãe por mim.
Porque eu faria qualquer coisa para fazê-lo feliz, e seria capaz de morrer para não vê-lo sofrer.
Claro que Rafe estava completamente apavorado com a idéia da missa. Tentei tranqüiliza-lo como pude, e deu um pouco certo, mas eu sabia que ele estava apenas fingindo para mim, ter ‘coragem’. Depois de muito esforço - devido as enormes asas, consegui vesti-lo com uma camisa branca. O difícil foi convencê-lo a sair e caminhar até a igreja.
- Sam... Eu tenho mesmo que ir? – perguntou quando já estávamos na rua a caminhar.
A mão dele – agarrada a minha – parecia um gelo tremendo.
- Temos sim, porque senão o bispo vai acusar minha família de egoísmo. - Paramos na porta da igreja, e eu olhei no fundo dos seus olhos extremamente azuis. - Não tenha medo. Estarei com você.
Entramos na pequena capela aos olhares chocados da cidade. A cada comentário que ouvíamos Rafe se encolhia ao meu lado. Olhei para ele por um minuto. Seus olhos assustados estavam cheios de lágrimas – mais uma vez – como os de um menino com medo.
Fiz questão de ficar no altar com ele, mas logo o bispo começou a criar problema e eu o deixei lá sozinho.
- Irmãos e irmãs. Temos aqui em vossa frente um mensageiro de Deus para nossa cidade. Vamos ouvir o que ele tem a dizer!
Comecei a tremer quando vi todas aquelas pessoas virarem para Rafe. Olhei para ele.
Uma lágrima rolava em seu rosto, ele apanhou-a e olhou para mim sem entender. Eu sorri, pela descoberta dele, mas não podia responder a pergunta que seus olhos curiosos me faziam. Eu não podia fazer absolutamente nada.
Estava impotente.
- Diga algo! – gritou o bispo.
- Eu... – começou Rafe - ...Não tenho nada a dizer.
- Como nada? – perguntou diante da exclamação do povo.
- Não sei de nada, nem de onde vim, nem como cheguei. – descreveu sinceramente - Só me lembro de cair!
- Mas é claro! – gritou o bispo – Você apenas caiu. Por acidente! Iremos devolvê-lo!
- Como assim devolve-lo? – gritei me erguendo diante da afirmação dele.
- Vamos dar-lhe um veneno, para que retorne aos seus. – proferiu com um sorriso na face. – vamos fazer essa gentileza ao senhor Jesus. Vamos devolver-lhe seu anjo. – gritava enquanto todos concordavam felizes.
Meu coração se perdeu nas batidas, não conseguia respirar só de pensar na possibilidade. Não podiam matá-lo! Ele era um anjo! Não podiam fazer isso comigo! Eu não iria suportar!
- Não! – gritei novamente no meio da igreja.
Corri horrorizada e abracei Rafe. Nem cheguei a notar as lágrimas caindo de meu rosto. Fiquei feliz ao notar que ele me abraçou com a mesma intensidade.
- levem-no para o palácio, para vossa majestade conhece-lo. - e - não sei de onde surgiram - três homens vieram para me afastar dele; que entrou em pânico novamente.
Não posso condená-lo. Eu também entrei.
Apesar de todos os gritos e tentativas de Rafe, conseguiram leva-lo - para minha agonia. E eu fiquei ali, sem poder fazer nada - já que um homem me agarrou e segurou ao mesmo tempo. Acabei sendo obrigada a sentar-me e assistir o resto da missa. Mas eu já não via nada. Não ouvia nada. Eu só chorava e chorava, refletindo na probabilidade de assassinarem Rafe.
Meu Rafe. Meu anjo.
Ouvia minha mãe me chamar ao fundo – bem distante – mas não conseguia me mecher. Estava petrificada de dor.
Ela dizia que a missa havia acabado. Que deveríamos sair.
Mas só as lágrimas se manifestavam.
A dor que era insuportável se espalhava do meu íntimo ao meu corpo. Como se tivessem extraído meu coração – embora eu ainda o sentisse bater – porque havia uma assombrosa cratera em meu peito e eu sentia cada vez mais a sua escuridão aumentar em mim, sem que eu pudesse fazer nada.
- Acho que ela está em estado de choque – disse Phelip.
- Sam! Fala comigo. – dizia meu pai a me sacudir. – Samantha!
Nada.
- Pra mim isso é frescura. – disse Cassandra.
- Talvez devêssemos chamar um médico. – falou minha mãe.
Alguém respirou fundo.
- Eu sabia que aquela ave não ia fazer bem a ela. Estava muito apegada a ele. – continuou Phill – eu a levo. – disse a alguém.
Logo senti ele agarrar meu tronco, minhas pernas e me suspender no ar.
No meio do caminho esforcei-me para dizer algo, mas só consegui quando chegamos e Phelip me colocou de pé sobre o chão.
- Rafe... – chamei aos prantos. – Rafe...
- Sam, ele não mora mais aqui. – disse Phill me olhando nos olhos – ele não existe mais para você. Ele vai morrer.
Parei para analisar a frase, e respirei fundo.
‘Então eu quero ir com ele’ respondi em meu íntimo.
Fechei os olhos. Não sentia mais nada.

segunda-feira, 29 de junho de 2009

Capítulo 1

Rafe

Era um fim de tarde nublado com leves brisas. O sol raramente aparecia entre as nuvens. E eu, apreciava, sentada na beira do lago, os passarinhos beberem água.
As flores que caiam das árvores em minha cabeça constratavam com a cor da minha roupa. O outono estava acabando, logo seria inverno e o lago que eu tanto gostava se congelaria novamente.
Eu apreciava feliz, enquanto podia, a calma do lugar.
- Samantha! – Ouvi um grito distante.
Levantei-me devagar e indignada - precisava dar esse grito? - e andei pelo parque até chegar à casa vermelha no fim da rua. Parei quando os avistei, respirei fundo, e entrei porta adentro.
- Chamou meu pai? – Perguntei.
- Não me fale comigo nesse tom! O Visconde Doutri veio visitá-la. – respondeu ele nervoso.
John Bradley era um homem simples, sem riquezas, mas sempre tentava fazer de tudo para garantir que as filhas tivessem uma vida melhor, mesmo que isso significasse um casamento arranjado. Eu era sua filha mais ‘preciosa’. Tinha sido estudada e educada no sul da Inglaterra por minha Tia nobre, então ele se aproveitava do meu conhecimento e também da minha juventude para tentar me arranjar em um casamento com outros nobres - por mais que eu já tenha dito que não iria me casar aos 17 anos.
- Está cada dia mais linda – disse o Visconde cavalheiramente.
O visconde não era velho, devia ter uns 22 anos, era alto e forte. Ele era bonito e elegante, mas não me enchia os olhos, talvez porque o conhecia desde criança.
- Bondade do senhor – respondi, sendo educada.
- Me desculpe atrapalhar suas atividades normais...
- É, geralmente o senhor tem interrompido muito!
- Samantha! – repreendeu meu pai.
- Bem, é verdade meu pai!
- Me desculpe pela boca da minha filha, Visconde...
- Ora, o que é isso! Eu conheço Sam há muitos anos, Sr. Bradley. Não esperaria resposta diferente dessa.
- Mesmo assim – continuou enquanto me lançava um olhar censurador – Samantha ainda não aprendeu a se comportar na frente de visitas!
- É... Parece que a tia Grimaldi não conseguiu lhe ensinar isso. – concordou o Visconde, em tom sarcástico.
- Espero que o senhor Visconde não queira se certificar que eu vá aprender. – respondi no mesmo tom.
- Claro que não. – me respondeu sério – Gosto da sua originalidade. E quantas vezes vou ter que pedir que me chame de Peter?
Um silêncio irrompeu a sala. Depois de alguns segundos Sandrinha chegou à sala e deixou uma jarra de suco. Ela sempre foi pálida, bonita, e tinha curtos cabelos negros. Eu nunca entendi porque ela não gostava de mim.
- Obrigado Cassandra. – disse meu pai.
Ela me lançou um olhar de fúria e saiu pisando firme.
- Meu Deus, olha à hora! – comecei, fingindo surpresa. – São quase sete! O senhor obviamente é um homem ocupado. – continuei me levantando - Deve estar cansado... Talvez esteja na hora de se recolher...
- Sam! Assim o Visconde vai achar que você está o expulsando!
- Ora meu pai. Só quis ajudar. – respondi tentando parecer ingênua.
- Se quiser pode ficar para o jantar, senhor.
- Não, não. Na verdade, Samantha tem razão. – concordou levantando-se – Já passou da hora de eu me recolher. Vim apenas para vê-la.
- Ah que pena. – comentei, ironicamente.
- Volto na próxima semana para visitá-la. – disse para mim, enquanto beijava minha mão. – Contarei os dias para revê-la.
Eu detestava fazer aquele papel da jovenzinha donzela. Aquilo era patético, cada vez que ele chegava eu contava os segundos para ele ir embora. Fiz uma careta enquanto ele saía em companhia de meu pai.
Aproveitei para fugir para a cozinha, antes que papai voltasse.
Sabia que iria ouvir.
Encontrei lá minha mãe mexendo uma panela velha, enquanto Cassandra tentava fazer o dever de história. Ela dava pequenos gemidos em curtos espaços de segundos, o que me levou a acreditar que ela só estava quebrando a cabeça.
- Não é assim que se faz Sandrinha – começei em direção a mesa.
- Me deixa! – gritou a garota levantando-se de repente e me empurrando para a parede.
- O que é isso Cassandra? – gritou minha mãe.
A garota não respondeu. Apenas saiu com raiva para o quarto.
- O que eu fiz? – perguntei.
- Nada – disse à menina que tinha acabado de surgir – Você sabe como a Cassandra é. Ela fica com raiva sempre que você ganha uma coisa!
- Mas eu não ganhei nada!
- É, mas você tem um pretendente, e ela não. Só isso já basta.
Nós ficamos em silêncio diante da verdade absurda dita.
Aos 12 anos, Maya Bradley era minha irmã mais nova. Era impossível não se encantar com ela. Tinha cabelos loiro platinado, como os da mãe, e olhos extremamente azuis. Parecia um pequeno anjo.
- Samantha! – ouviu-se o grito de meu pai ecoar pela casa.
Logo ele estava na cozinha.
- Você está de castigo! – disse dirigindo-se a mim.
- Ora, o que fiz?
- Você sabe o por que! Já mandei parar de tratar o Visconde mal!
- Não seja teimoso papai! Eu tenho 17 anos, eu não o amo! Não quero casar! – me exaltei levantando-me.
- Não importa! Amor vem com o tempo! – gritou erguendo-se também.
- Importa para mim! – gritei, uma enorme tensão se espalhava na cozinha.
- Quem geralmente faz esse trabalho é sua irmã, Cassandra, mas apartir de hoje você vai fazê-lo. Todos os dias pela tarde você vai colher gravetos no bosque, para a fogueira, ao invés de sonhar com besteiras naquele lago!
- NÃO! Pai, por favor! Pai?
- O castigo está dado Samantha. Está imposto até que você tome juízo!
Eu senti meu coração ir apertando lentamente. O ódio correndo em mim. Saí para me despedir do lago que não veria tão cedo. Ouvi minha mãe gritar enquanto me distanciava. Eles não podiam entender. Era o único lugar que me sentia em paz para pensar, ler, e sonhar.
Agora o tinha perdido.

Com o passar dos dias, eu me deprimia mais.
Não tinha mais privacidade, nem tempo de ler meus livros. Aos poucos, a vida ia ficando cada vez mais sem cor. A única coisa que restava a fazer era bordar e dormir. E assim, passaram-se meses de tristeza. Agora, eu não tinha animo nem para receber o Visconde quando ele vinha me visitar. Minha vontade era dormir e não acordar.
E toda tarde eu tinha que ir buscar os malditos gravetos para o fogo do jantar!
Dura realidade.
Em mais um dia tedioso, eu me levantei e fui passear pela floresta a procura de gravetos.
Era uma das tardes que eu gostava, nublada com leves brisas. Caminhava sem pressa com um cesto na mão. Admirei a paisagem da floresta no outono, de folhas caídas e aproveitou o frescor das cinco da tarde. No princípio da noite, eu me preparava para retornar a casa, quando ouvi os pássaros voarem e alguma coisa grande cair entre as arvores.
Deixei minha cesta no chão, entre as folhas e corri para o local. Tinha certeza de que seria um pobre pato gordo que se desequilibrou de sua viagem. Mas ao chegar lá, eu encontrei algo mais ferido do que um homem na guerra e mais belo que qualquer animal já visto.
Abri e fechei os olhos com força várias vezes para ter a certeza de que era real.
Era, ou parecia ser, um garoto caído entre as folhas do chão. Haviam duas grandes asas que estavam coladas ao seu corpo. E mesmo que não as tivesse, não seria inacreditável se me dissessem que talvez ele fosse um anjo, de tão lindo que era.
Sua cor se embatia com seu cabelo preto e mesmo com alguns cortes, era possível ver que sua pele era perfeita. Eu me sentei ao lado do seu corpo debilitado e imóvel.
Inicialmente achei que estaria morto, mas ele logo acordou. E eu - totalmente abestalhada fiquei a observar seu comportamento.
Ele ofegava como se estivesse correndo e respirava com muita dificuldade. Olhava para mim sobressaltado, sua expressão era de dor ele e tremia como uma folha ao vento.
Passou algum tempo até que um de nós falasse algo.
- Meu nome é Sam – falei me aproximando enquanto ele se encolhia numa árvore. – Tudo bem. Não vou te machucar...
Continuei. Consegui chegar bem próximo dele.
Fora o som da sua respiração ofegante, ficamos em silêncio.
Era visível a luta interna dele para continuar consciente.
- R-Rafe – sibilou com extrema dificuldade.
- Rafe... – repeti.
Como uma criança, fiquei ali apenas examinando o quanto ele era diferente. Meu coração batia desesperado, estava mais assombrada que ele.
Era como se eu estivesse diante de um ser de contos de fada.
Como era previsto, ele não conseguiu ficar por muito mais tempo acordado, e perdeu os sentidos depois de alguns minutos.
- Rafe? Rafe? – o chamei sem sucesso.
E agora? O que eu iria fazer? Não poderia deixá-lo ali!
Levantei-me prontamente, ergui as enormes saias, e corri até em casa.
Quem ligava pra gravetos uma hora dessas?
- Mãe! Mãe! – gritei enquanto chegava à habitação.
- Hey! Calma garota! Nossos pais e irmãs foram visitar o tio Bill. – respondeu o jovem de cabelos escuros. – Fiquei para tomar conta de você.
- Eu encontrei... Encontrei... – arfava, ignorando seu falatório.
- Encontrou o quê? Mais gravetos? – perguntou ele.
Phelip era meu belo e civilizado, irmão mais velho.
Cobiçado por todas as famílias do pequeno vilarejo onde morávamos, ele tinha - na maior parte do tempo - um humor sarcástico que às vezes me irritava.
- Vem! – chamei-o exaltada. Não podia deixar Rafe sozinho, ele estava muito machucado... E se ele morresse?
- Espere! – gritava Phelip apressado atrás de mim.
Logo eu cheguei - primeiro - ao local que o havia deixado inconsciente, mas para meu espanto, ele havia desaparecido completamente deixando apenas uma trilha de sangue e penas para trás.
Um pouco depois Phelip chegou ao meu encontro e assombrou-se ao ver o caminho de líquido avermelhado.
- Sam... - arfou ele se apoiando em uma árvore para respirar melhor - Mas... O que é isso Samantha? Você... Matou uma galinha?
- Não seja bobo! – disse desesperada.
Meu corpo todo tremia.
Sentia meu coração acelerado. Perguntava-me se ele não fora uma ilusão. Tinha certeza que não. Decidiu seguir a trilha.
- O que está fazendo? – perguntou Phelip pasmado – E se for um lobo?
- Não é um lobo! Eu sei o que é! – gritei andando pelo caminho.
- E o que é? – perguntou ele passando em minha frente, em uma tentativa ridícula de me impedir.
Eu parei.
Como iria dizer o que ele era se eu não sabia?
- É... Um garoto. Eu acho.
- Um garoto? – perguntou com o rosto incrédulo – estava sozinha na mata com um garoto?
- Não! É... Saia da frente Phelip! – respondi confusa, empurrando-o. Ele não entenderia mesmo...
- Samantha! Volte aqui! – gritava ele, seguindo-me com dificuldade, já que eu praticamente corria como se estivesse sendo perseguida.
- Você não vai entender sem ver Phelip! Eu preciso ajudá-lo! – gritei para ele. Meu vestido já havia sido rasgado pelas raízes das árvores, sem que eu me importasse.
Não foi preciso ‘correr’ mais de um metro para encontrar Rafe.
Ele estava encostado em uma árvore, respirava com a mesma dificuldade, mas tentava arduamente continuar de pé.
Eu me aproximei rápido, enquanto Phelip permanecia petrificado sem acreditar. Rafe se desesperou logo que me viu.
Ele sangrava como se alguém tivesse o esfaqueado.
- Calma, calma! Já disse que... Não irei machucá-lo. – disse exaltada. – Só quero lhe ajudar...
E ele pareceu me ouvir, porque parou para me contemplar.
Depois de alguns minutos ele parecia esforça-se para falar.
- Samantha... – começou Phelip, mas fiz um gesto para que ficasse quieto.
- Não se esforce... – lhe respondi. Ele gemeu e fez uma pausa para dar uma grande tragada no ar. A seguir soltou outro grunhido de dor e caiu de joelhos no chão. As enormes asas abertas no ar...
Era evidente o fundo corte acima de seu tórax.
- Phelip, o que está fazendo aí parado? Temos que ajuda-lo! – gritei.
- Bem... Eu...
- Vem logo!
Com a ajuda de Phelip - que reclamou o caminho inteiro – nós conseguimos levar Rafe para nossa casa.
- Deite aí na cama. – disse para ele. Nós três havíamos chegado ao quarto das meninas, e ele ainda respirava com dificuldade.
Ele parou por algum tempo, mas teve que assentir. Não estava suportando nem o próprio peso. Suas asas quebraram algumas coisas no quarto, mas eu não liguei muito. Depois de algum tempo eu o fiz parar de sangrar. Mesmo assim, a imagem dele ainda era assombrosa para todos. Menos para mim. Eu admirava sua perfeição por horas.
- Pai! - gritou Phelip logo que ele entrou com minha mãe e irmãs.
Do quarto ouvi a conversa deles.
- A viagem foi ótima, antes que pergunte Phelip...
- Não é isso pai... A Sam... Ela achou... Eu tentei impedir, mas... Ele... Ia morrer! – gaguejava em pânico.
- Phelip se acalme. – começou nossa mãe – o que a Anya achou? - Ele decidiu leva-los até o quarto. Pelo que conheço dele, estava com receio de dizer e eles não acreditarem. Ao chegar, todos encontraram Rafe sentado e encostado na minha cabeceira, em minha companhia, com as enormes asas agora mais fechadas, nós só nos encarávamos sem pronunciar nada.
- Samantha... – começou meu pai. A voz dele fez com que eu me levantasse atordoada. – Quem... O que é isso?
- O nome dele é Rafe, pai.
- Rafe... – repetiu ele assim como eu da primeira vez que o vi.
- Cale a boca John! – disse a mãe ajoelhando-se ao lado de Rafe – Não vê que Deus nos abençoou? Olhe! Ele é um anjo!
- Tem razão Leya... Talvez ele tenha alguma mensagem do senhor para nós...
- Bem – comecei – Ele não é de falar muito. – eu continuei vendo que ninguém me interrompera – Eu o encontrei ferido na floresta, acho que ele... Caiu. Phelip me ajudou a trazê-lo...
- Ajudei? – interrompeu ele – Eu praticamente o carreguei!
- Não exagere Phill! Ele veio andando! – disse - A mãe tentou tocar na mão de Rafe, mas ele a retirou como se estivesse ferida. - Ah, mãe? Ele não gosta muito... Que o toquem... Acho que ele tem medo de nós.
- Por quê?
- Eu já disse que não iremos machucá-lo, mas ele não gosta mesmo assim.
- Anjos tem idade? – perguntou Maya.
- Não seja boba! Anjos vivem para sempre! – disse Phelip
- E como é que você sabe? – perguntou Cassandra. – Quantos anos você tem?
Demorou um pouco para que Rafe respondesse.
- Dezessete. – disse para surpresa de todos.
- Ele pode ficar não pode? – perguntei. – Pelo menos até melhorar.
- Claro. – gritou Leya. – Será uma honra abrigar um anjo do senhor em nossa casa!
E assim foi. As semanas foram passando e Rafe foi ficando cada vez mais. Ele se tornou amigo das meninas, mas só falava se lhe perguntassem alguma coisa. Conversava mesmo comigo. Todos o tratavam bem e criaram um tipo de carinho por ele, menos Philip. Ninguém sabia por que ele não gostava de Rafe, que não parecia se incomodar com isso. Ele só saia de casa para o quintal. Evitava sair para que ninguém pudesse ver suas asas, e também não podia voar porque uma delas ainda estava quebrada.
- Sam. – chamou ele.
Nós dois estávamos no quintal. Ele me observava pegar ovos das galinhas.
- Que foi?
- Eu morava aqui, antes da queda?Quero dizer... Eu sou da sua família?
Eu parei de me mecher para encará-lo com minha expressão duvidosa.
- Do que está falando Rafe? Nós nunca havíamos visto um anjo antes!
- Será que... Eu sou um anjo mesmo?
- E o que mais seria?
- Eu não sei... Não me lembro.
- Como assim, não se lembra?
- Eu só me lembro do meu nome! Isso não é normal! Eu não sou normal... – disse exaltado.
- Você sabe quantos anos tem...
- Mas eu disse como um extinto, não como uma lembrança!
- Não sofra com isso, Rafe! – disse encarando-o de perto – Se é tão importante pra você... Eu o ajudo a descobrir quem você é, e de onde veio.
- Faria isso por mim?
Demorou um tempo até eu parar de admirá-lo.
- Faria qualquer coisa por você... - respondi feliz, por ter conseguido lhe arrancar um sorriso.
O sorriso mais belo de toda a existência...

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Em breve capitulo 2